Confusa pelo que acontecia, e ainda sonolenta, Emília ajeitou como pôde as dobras do vestido e seguiu a luminescência do lampião da mãe escada abaixo. Sentindo o cheiro azedo nas axilas, Emília pôde antever, entre tantas outras, a bronca que receberia por ter ido deitar sem tomar banho.
A primeira coisa que percebeu ao chegar na sala de jantar foi o olhar emproado que lhe dirigia Benta, evidente mesmo à tênue luz do lampião. A segunda foi que só havia um prato sobre a mesa, bem à frente da cadeira que a mãe agora puxava, fazendo gemerem as tábuas do assoalho.
– Sente-se. – ordenou-lhe Beatriz.
Apesar do mau pressentimento que a coisa toda lhe provocava, Emília obedeceu. O prato diante de si quase transbordava de um mingau esfumaçante, que ela logo percebeu tratar-se de caldo de aipim. O cheiro apetitoso aguçou-lhe a fome, e Emília serviu-se de uma farta colherada.
Na mesma hora, cuspiu tudo de volta no prato.
A língua de Emília agitou-se e a garganta retraiu-se, tamanho o amargor. A saliva varreu-lhe o interior da boca aos borbotões, mas isso só pareceu piorar a sensação, remetendo Emília da vez que, sem querer, bebera água do mar.
– Coma. – disse a mãe, apertando-lhe com força o ombro.
– Mamãe, não... por favor...
– Pensa que não sei que acorda no meio da noite para roubar comida? Que rasteja pelos cantos, como uma barata? Como um deles? Não percebe quanto isso é desprezível? – a voz da mãe era carregada de ojeriza. – Faça o que estou mandando, ou juro que vou te amarrar na cama, sem comer, por uma semana.
A maneira gélida de Beatriz de Oliveira não deixava dúvidas de que era uma mulher capaz de honrar suas mais terríveis promessas. Emília sabia que não tinha escolha. Levou outra colherada a boca, mas não sentiu qualquer sabor. Havia apenas o sal, queimando sem calor, ardendo como se sua língua, palato e bochechas estivessem em carne viva.
Com os olhos lacrimejando, Emília voltou-se para Benta, cujo semblante deixava transparecer seu deleite diante daquela cena. A satisfação da irmã foi o incentivo para que não parasse. Decidida a ser forte, nem que fosse apenas para afrontar a malícia de Benta, Emília continuou a forçar a asquerosa gosma garganta abaixo.
Era como se tivessem engrossado o caldo com puro fel em vez de aipim. Emília jamais imaginou que algo no mundo pudesse ser tão horrivelmente salgado. Ainda assim, não podia parar. Quatro colheradas, cinco, seis... Encarou o prato e constatou, nauseada, o quanto ainda faltava. Por que diabos faziam pratos tão fundos? Sete, oito... precisava continuar, precisava ser forte.
A colherada seguinte mostrou que seu estômago não era tão forte quanto sua determinação. Todo o caldo que ingerira precipitou-se garganta acima, em um jorro que cobriu com uma poça azeda o assoalho aos pés de Emília. O vômito deixou a boca de Emília ainda mais amarga, de modo que a menina continuou a tossir, mesmo quando não havia mais nada o que pôr para fora.
– Luzia! – gritou a mãe. – Luzia, venha já aqui!
Momentos depois, a empregada apresentou-se, tentando aprumar as vestes amarrotadas pelo sono. Ao perceber o que acontecia, seu rosto negro, coberto de duras linhas de expressão, contraiu-se em uma mistura de asco e piedade.
– Limpa isso aí, agora.
– Sim, senhora. – respondeu Luzia, saindo à procura de alguns panos de chão.
– E você. – a mão tornou a apertar-lhe o ombro. – Coma o resto.
Emília precisou trincar os dentes para não chorar. Restava, ainda, quase que a metade do caldo no prato. Sentiu vontade de implorar sua mãe por perdão, mas estava decidida a não fazê-lo. Sabia que não fizera nada errado. Além disso, havia o sorriso de Benta.
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O Sítio
HorrorSérie literária de mistério e terror inspirado no Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato. Pedrinho é um garoto da cidade que, como tantos outros, não entende bem o complicado momento que vive seu país. Apenas quando seu pai, um ativista políti...