1x21 - Benta (Parte III)

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 – Não tem outro caminho? – perguntou Emília, lançando um olhar preocupado por entre os pés de milho.

– Aqui é mais rápido. – respondeu Anastácia. – E não arrisca alguém vê nós.

– "Nos ver". – corrigiu Emília, outra vez. As aulas que vinha dando a Anastácia vinham surtindo um rápido efeito, mas vez ou outra e menina ainda cometia certos deslizes.

– Não arrisca "alguém nos ver". – repetiu Anastácia, pausadamente.

– É, está quase bom.

Anastácia sorriu e continuou abrindo caminho pela plantação. Emília, por sua vez, seguia tensa, pois sabia que já devia estar chegando perto. Perto "dele". Detestava, com todas as forças, ter que por seus pés no milharal. Por outro lado, adorava milho, especialmente besuntado com bastante manteiga e... a breve distração foi suficiente para que o monstro surgisse bem do seu lado, súbito e amedrontador.

– AARRGHHH! – berrou Emília, atracando-se à Laura, sua escolhida para aquela tarde.

– Não grita assim! – advertiu Anastácia. – Vão escutar nó... vão nos escutar. O que aconteceu? Se machucou?

Emília não fez mais que afundar seu rosto nos panos da boneca e apontar para a sombra que se erguia acima dos pés de milho. Vestido um traje verde vívido, o homem de palha tinha os braços estendidos para os lados, pregado como estava nas traves em formato de cruz. A cabeça, sobre a qual repousava um chapéu esfarrapado, era feita de uma velha bola de futebol, rasgada de tal forma que parecia dotada de olhos e boca.

– Vamos embora daqui! – implorou Emília.

– Não fica com medo.

– Ele é muito feio!

– É só um boneco, que nem a Laura. – disse Anastácia.

– Não diz isso! – retrucou Emília que, de olhos fechados, não sabia bem em que direção esbravejar. – A Laura é linda. Agora vamos, por favor!

A visão de Emília tateando o ar à sua procura fez Anastácia rir. Ficou assim por um tempo, indo de um lado para o outro enquanto a amiga apertava espigas de milho, pensando ser o seu braço. Não tardou para Emília cair na gargalhada também, embora tenha continuado de olhos cerrados até que Anastácia finalmente tomou sua mão e a levou para bem longe do terrível Visconde de Sabugosa.

– Esse é o nome dele mesmo? – perguntava Anastácia, quando já se aproximavam de seu destino. – Sabugosa?

– Foi a Benta que pôs esse nome dele. – disse Emília, injuriada. – Eu teria chamado de Coisa Feia. Queria que papai o tirasse dali e tocasse fogo, mas a Benta insistiu para que não. Meus pais sempre acabam fazendo o que a Benta quer. Sei que ela só fez isso porque sabe o quanto me assusta, aquela coisa feia!

– Ele só é feio assim pra assustar os bichos que dão na plantação.

– Isso nunca acontece aqui. Aqui, nunca dá nada de errado com as colheitas...

A frase de Emília ficou pela metade, interrompida no momento em que as duas atravessaram a última fileira de pés de milho, de volta para a trilha de terra batida. Do outro lado abria-se um descampado sobre o qual se erguia uma construção solitária, comprida e muito mais baixa do que, aos olhos de Emília, uma casa deveria ser.

– Então aqui que é a senzala... – balbuciou ela, com entristecido fascínio.

– Não. – respondeu Anastácia, a quem era estranha aquela palavra. – Aqui é a minha casa.

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