Faziam quase duas horas que Barnabé o havia deixado.
Faziam quase duas horas que estava completamente sozinho.
Um ônibus encostou e partiu, sem que Pedrinho tivesse tido coragem de embarcar. Um outro já estacionara na parada, mas Pedrinho não fazia ideia da hora em que partiria, tampouco qual seria sua reação quando o motorista acordasse de sua soneca e fizesse a chamada final para o embarque.
- Está na fila, meu filho? - perguntou-lhe um senhor muito idoso, que acabava de chegar.
Pedrinho, sentado à beira da calçada, respondeu acenando um sim com a cabeça, sem ter certeza de que era verdade.
Passara a última hora tentando decidir se atenderia ou não ao último apelo de Barnabé. Era difícil, já que seu amigo o abandonara às pressas e sem dar qualquer explicação, exceto a promessa de que o fazia pelo seu próprio bem.
Disso, Pedrinho não duvidava. Os eventos bizarros que testemunhara no sítio deixavam claro que alguma coisa de errada estava acontecendo. Em seus dez anos, jamais havia temido por sua vida, até o momento em que se viu correndo no meio da noite, com um monstro de uma perna só em seu encalço.
Ainda assim, Pedrinho não sabia quase nada sobre aqueles mistérios. Tinha suas suspeitas, especialmente em relação a Tia'Nastácia e sua relação com Emília, mas nada além. Sua viagem ao lado de Barnabé não lhe rendeu as respostas que procurava, apenas um baita susto, um monte de dinheiro (que, no fundo, Pedrinho sentia estar mesmo roubando de Dona Benta), e mais perguntas.
Pelo que devia ser a vigésima vez desde que sentara na calçada, Pedrinho revirou os bolsos à procura da carta. Desdobrou a folha com cuidado, lamentando não ter tido tempo de enviar para a mãe a mensagem que lhe escrevera com tanto carinho. Agora, teria que esperar chegar até a casa de sua avó, isso se de fato fosse embarcar para a capital. Afinal, o dinheiro que tinha era mais que suficiente para contratar, ali mesmo em Montes Calmos, um carroceiro para levá-lo de volta ao sítio. Mas não sem antes, claro, postar a carta para sua mãe e comprar um presente para Narizinho, como tinha sido sua intenção em primeiro lugar.
Nesse instante, percebeu algo pelo canto de seu olho. O mendigo que estava estirado na esquina havia se levantado, e agora caminhava, trôpego, em sua direção. De cara saltou à vista de Pedrinho o estado deplorável de suas roupas, encardidas e esfarrapadas como sacolas velhas. O homem em si não parecia tão velho, apesar da sujeira que branqueava a barba cheia e desgrenhada. Exalava um fedor azedo de suor e lixo, tão forte que embrulhou o estômago de Pedrinho.
- Tinha um buraco aqui, agora não tem mais... tinha um buraco aqui, agora não tem mais... - repetia o maltrapilho.
Quando os olhos do mendigo encontraram com os de Pedrinho, ele estacou e calou-se. Por um momento ficaram assim, encarando um ao outro, e Pedrinho surpreendeu-se com o quanto a situação não o assustava.
Quem sabe, o Sítio do Picapau Amarelo havia mudado a forma como sentia medo.
Fosse como fosse, no instante em que o mendigo lhe deu as costas, as portas do ônibus se abriram e Pedrinho, sem saber exatamente como, teve a certeza de que precisaria ir. Afinal, mesmo que tentasse voltar ao sítio, jamais chegaria lá antes de Barnabé, e daí, como se explicaria para Dona Benta? O peão já teria contado sua mentira. Talvez só acabasse lançando suspeitas sobre Barnabé, e colocando-o em maus lençóis quando tudo o que ele queria era protegê-lo.
Um nó doloroso se formou na garganta de Pedrinho, mas ele sabia que não tinha escolha. Quando o motorista chamasse, teria que subir os degraus do ônibus e ir embora dali, rumo a um destino incerto, deixando para trás o sítio, seus segredos e sua breve amizade com a menina de nariz arrebitado.
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O Sítio
HorrorSérie literária de mistério e terror inspirado no Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato. Pedrinho é um garoto da cidade que, como tantos outros, não entende bem o complicado momento que vive seu país. Apenas quando seu pai, um ativista políti...