Pedrinho percorreu com seu olhar a carta, tentando ao máximo ignorar sua última frase e o pensamento que não queria ter. Uma súbita sensação de urgência tomou conta de seu coração; algo em seu âmago lhe dizia que não podia simplesmente sentar e esperar que um carro viesse da cidade para salvar Narizinho.
"Eles chamam de sala dos anjos.", as palavras saltavam à vista. "Lá que eles deixam as crianças".
Era pouco, mas era um começo. Narizinho aludia, de forma consciente ou não, a algum tipo de cômodo secreto. Se ela havia estado nessa "sala dos anjos", talvez lá estivesse a explicação para o que havia lhe ocorrido. A que crianças se referia, porém, Pedrinho preferiu por ora ignorar. Precisava de mais pistas.
"Desce as escadas", dizia a carta, o que podia significar que a sala secreta ficava no segundo andar da Casa Grande, exatamente onde se encontrava. "Você precisa fazer a curva no corredor à esquerda, e para dentro."
Pedrinho deixou o quarto.
À meio caminho entre sua porta e a de Dona Benta, o corredor se abria para uma curva esquerda que, precisamente, conduzia ao interior da casa e às escadarias para o primeiro andar. Pedrinho investigou a parede por quase toda a sua extensão, tateando-a à procura de alguma abertura escondida, mas por nada.
Os minutos acumulavam-se, angustiantes.
Pedrinho leu a mensagem outra vez. "Vou te ensinar como sair de lá"... sair, sair, sair... mas o que ele queria era entrar na sala dos anjos, não sair. Logo, a orientação contida na carta precisava ser invertida. "À esquerda, e para dentro..." transformava-se em à direita, e para fora.
Estava no lado errado!
Pedrinho dirigiu-se à porta do quarto de Dona Benta e, a partir de lá, recomeçou sua caçada pelo cômodo secreto de Narizinho. Contudo, ao alcançar novamente a intersecção no corredor, deu-se conta do quanto aquilo não fazia sentido. Como seria possível fazer uma curva para fora? Era impossível!
Pedrinho levou as mãos à cabeça, desolado. Investira todo o seu raciocínio para resolver aquela charada, mas estava falhando. Sua vontade era de desistir, apenas deitar a cabeça no travesseiro e dormir e sonhar, como há tanto tempo não fazia. Quem sabe conseguisse sonhar com sua casa, com seus pais, com sua vida antes do sítio.
Havia, porém, sua intuição. A voz inaudível no fundo da sua cabeça, dizendo-lhe para não desistir. Dizendo-lhe o quanto Narizinho dependia de sua persistência. Dizendo-lhe o quanto ele estava perto.
- Pedrinho!
Dona Benta chamava por ele lá de baixo, mas Pedrinho não deu ouvidos. Apenas retornou ao ponto de partida, a porta do quarto da senhorinha, e se pôs a ler mais uma vez a carta. Linha por linha, palavra por palavra, até que seus olhos pousaram na enigmática passagem:
"Você tem que não ver a parede", estava escrito. "Só assim que funciona"
Algo lhe surgia.
Pedrinho fitou a curva no corredor, realizando que já testemunhara muitas coisas impossíveis naquelas férias fora de época. Então, pôs as mãos contra a parede, e fechou os olhos. Assim, às cegas, Pedrinho avançou pelo corredor, certificando-se de ter as as palmas das mãos firmes contra a parede antes de dar o próximo passo adiante.
- Pedrinho! - tornava a lhe chamar Dona Benta.
Quando alcançou a curva, Pedrinho tentou tatear a parede do corredor, mas em um primeiro momento, encontrou apenas o vazio. Sua mão simplesmente mergulhou para dentro do nada, em um ângulo tão agudo que deveria estar tocando seu próprio ombro. Esticando ainda mais o braço, contudo, Pedrinho conseguiu sentir o toque frio do concreto na ponta dos dedos.
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O Sítio
HorrorSérie literária de mistério e terror inspirado no Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato. Pedrinho é um garoto da cidade que, como tantos outros, não entende bem o complicado momento que vive seu país. Apenas quando seu pai, um ativista políti...