1887
Naquele dia, Emília chegou tão cedo em casa que, enfim, pôde jantar ao lado de sua mãe e de Benta. Não que fizesse a menor questão disso, especialmente após o que sofrera no dia anterior, mas comer o ensopado de frango com batatas ainda fumegando da caçarola, em vez de frio e endurecido na calada da noite, tinha lá suas vantagens.
Manteve-se cabisbaixa durante toda a refeição. O sorriso jubiloso sustentado por sua mãe insinuava que interpretava seu gesto como sendo arrependimento pelo comportamento que vinha demonstrando até ali, e Emília não faria o menor caso em esclarecer seu equívoco. Já Benta... havia algo em seu olhar, mas não era satisfação. Era astúcia. Benta sabia o que havia se passado entre ela e Anastácia.
Ela sabia.
Emília, ao procurar um espaço para a nova boneca na vitrine de seu bonnetiere parisiense, fez questão de alocá-la de forma que não a visse ao acordar. Passara toda a manhã irritadiça, remoendo em seu âmago o quanto as palavras de Anastácia a tinham magoado, ainda que parte do que ela havia dito já se perdesse entre os ecos de sua raiva. Emília sabia que era algo grave, muito sério, e também uma mentira.
Estava tão zangada que não quis saber de encontrar Anastácia. Sua hora de costume passou, e Emília continuou no quarto, brincando com todas as suas bonecas, menos com a que a amiga a havia lhe dado de presente. Quando o sol da tarde já estava alto, Emília olhou pela janela, deparando-se com a pequenina silhueta de Anastácia parada junto a um arbusto. Ela acenou.
Emília cerrou as cortinas. Amigas não deviam contar mentiras umas para as outras, ainda mais sobre algo importante como aquilo... seja lá o que "aquilo" fosse. Começou a pôr suas bonecas de volta em seus devidos lugares, sentindo no ar o cheiro adocicado de coco queimado, exalando das vestes de Emília. O cheiro da Mãe da Senzala.
Abraçando a boneca, Emília afundou o rosto no cabelo vermelho e amarelo. Sentiu-se outra vez com o coração pesaroso pelo ambiente miserável da senzala, momentos antes de entrar na casa de Christina, através de uma teia que não conseguia ver. A Mãe da Senzala lhe contara sobre o passado, e sobre segredos... Emília não queria acreditar. O que Anastácia dissera sobre a morte de sua prima, só podia ser alguma brincadeira de Benta.
Uma brincadeira cruel... tão cruel que...
"Não!"
Emília pôs a boneca na vitrine e saiu do quarto, esquecendo-se completamente de tudo, exceto da raiva que sentia de Anastácia.
O dia seguinte marcou o retorno de seu pai, e a animação que demonstrava ao desembarcar da carruagem dava a entender que os negócios em Montes Calmos não poderiam ter sido melhores. Para desgosto de Emília, acompanhavam-no o jornalista da cidade e seu fotógrafo. Já podia sentir as bochechas doendo pelos sorrisos forçados que em breve seria ordenada a exibir.
Na hora de escolher qual das amigas a acompanharia em seu suplício, algo curioso aconteceu. Talvez tivesse sido simplesmente o passar das horas que a acalmara, ou quem sabe o gostoso sonho em que se via brincando de pique-esconde ao lado daquele menino que não conhecia, o menino de olhos claros, rindo e correndo pela Casa Grande, com a boneca a tiracolo. A razão, no fim das contas, não importava. Só o que importava era que, ao abrir a vitrine de sua estante naquela manhã, Emília sentiu o desejo irresistível de tomar a outra Emília em seus braços e passar o resto do dia com ela, sufocando assim ao menos um pouquinho da saudade que começava a sentir de Anastácia.
– Mas que boneca horrorosa. – foi a primeira coisa que disse sua mãe.
– De fato, um modelo bastante precário. – concordou seu pai, agora que a entrevista fora interrompida para que o jornalista ajudasse o fotógrafo a montar a complicada câmera sobre o tripé.
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O Sítio
HorrorSérie literária de mistério e terror inspirado no Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato. Pedrinho é um garoto da cidade que, como tantos outros, não entende bem o complicado momento que vive seu país. Apenas quando seu pai, um ativista políti...