Point Of View Sheilla
A chuva se intensifica mais a cada minuto, hora ou outra clareando o céu pelos raios e tremendo levemente o chão pelo barulho estrondoso das trovoadas. Surpreendentemente, Liz não acordou pelo barulho, se manteve no seu quarto e fiz questão de ir verificar se continuavam dormindo bem algumas vezes, já que dispensei a presença da babá hoje, não seria justo que a mesma encarasse esse tempo. Gabriela por sua vez continuava sentada no sofá, folheando uma das edições especiais de Frozen das minhas filhas, realmente entretida no conteúdo, dando sorrisos bobos quando lia alguma coisa que agradava. Seu cabelo já havia secado e pela primeira vez pude enxergar seus cachos caindo pelo rosto, como caracóis brilhantes e ondas ainda mais hidratadas, se é que isso é possível.
Seu olhar se mantinha imerso no terceiro livro infantil que ela devorava, desviando a atenção apenas quando escutava algum barulho mais alto e se comprimia mais no canto do sofá. Não sei se por medo ou frio, mas era nítido seu desconforto com a chuva colidindo no teto e os clarões iluminando todo o céu, que mesmo ainda sendo 13 hora, já estava escuro como uma noite de inverno. Os movimentos de Gabriela eram sincronizados e já consigo vislumbrar um padrão quando algo a satisfaz: Sorri tímida, coça os olhos como se tentasse enxergar ainda mais inteiramente, franze a sobrancelha e por final, balança de leve a cabeça em concordância. Fez isso quando a elogiei, quando deu o primeiro gole no chocolate e também agora ao descobrir que a Anna realizou algum sonho, ou coisa do tipo.
- Três crianças na mesma casa, eu devia ter deixado que a babá viesse. - Tirei a garota dos seus devaneios e ela me olhou, ainda com um sorriso no rosto.
- Suas filhas são super sortudas de terem isso, quando lançou eu meio que fiz loucuras para tentar comprar antes de esgotar. - Foi impossível evitar o sorriso que rasgou meu rosto ao ouvir a frase pueril da mulher, que parece ainda mais encantadora com os cabelos desgrenhados e uma roupa muito larga para seu corpo.
- Minha amiga foi a responsável, na verdade, ela quem passou horas na fila para conseguir comprar. - Disse simplória, lembrando da festa das garotas quando Thaisa chegou com os presentes, ignorando completamente o meu presente e o de Brenno também. - E sem nem saberem ler, ficaram horas como você está agora. Não deixaram que eu lesse, então adivinharam sobre o que a história se tratava apenas pelas imagens. Não tive coragem de contar a verdadeira depois.
- E qual a versão delas? - Perguntou rindo, fechando o livro e colocando ao lado novamente.
- Elas acham que o Olaf se tornou um Deus, que a Anna se mudou para o Brasil e que a Elsa se casou com o príncipe da Inglaterra. - A gargalhada da garota preencheu a sala, tornando o clima ainda mais leve. Acompanhei seu riso, enquanto levantava para pegar um cobertor, cobrindo suas pernas trêmulas pelo frio.
- Eu acho a versão delas muito mais legal. Quem se importa com revolução de princesas e guerra gelada quando se tem teologia, nacionalismo e monarquia? - Me lançou um olhar travesso e estendeu o cobertor na intenção de me cobrir também, aceitei mesmo sem estar realmente com frio.
Liguei a TV colocando qualquer filme aleatório para passar, o qual a garota ao meu lado fez questão de dar toda atenção do mundo, às vezes comentando alguma coisa que eu me continha em apenas assentir, estando mais preocupada em examinar todos seus traços. O pequeno nariz franzido, bem parecido com o jeito que minhas filhas ficam, a boca pequena que, imprevisivelmente, esconde um dos sorrisos mais largos que eu já vi. Poucas horas com a garota e sinto como se já a conhecesse faz tempo, mas ao mesmo tempo parece um livro em que eu só li o prólogo.
Meu marido que foi o motivo do meu início de dia catastrófico, não veio na minha cabeça durante toda o resto da manhã até esse momento. Quando estou com Thaisa, ainda acabo sentindo o coração pesar em alguns momentos, como aconteceu várias vezes hoje no nosso café juntas de sempre. Quando estou sozinha me cerco de devaneios, ele vem e sai da minha mente, minhas próprias indecisões me pressionam e eu sei que atitude devo tomar. Contudo, hoje não. Hoje não pensei nele desde que vi Gabriela, não me forcei a decidir nada, não senti remorso e nem a desproteção que me acompanha faz alguns meses. Inexplicavelmente, estou em paz e é tão estranho não sentir um aperto no peito que nem mesmo posso acreditar.
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Coffee Break | SHEIBI
RomanceGabriela é uma jogadora de vôlei bem sucedida, a melhor da sua posição, mas em decorrência da pandemia teve que sair da Turquia e voltar para o Brasil. Na intenção de não ficar parada e nem sozinha, Gabriela aceitou um emprego em uma cafeteria no Mi...