Dose número 17

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— Bate, bate, bate na porta do céeeeu — O coro alcançou os meus ouvidos quando olhei de relance para Marcos, que estava cantando aquela maldita música desde que chegamos na área radical do parque, só pra me irritar.

Com certeza, aceitar aquela proposta indecente do meu chefe para ser jogada dentro de uma vã e me enfiar na Disney brasileira foi a pior de todas as minhas ideias. Como se já não bastasse a situação horrível, aquela melodia — inapropriada para a ocasião — se tornou um hino na boca do grupo quando decidimos descobrir o preço do ingresso da montanha russa, para depois literalmente bater na porta do céu. Eu mal conseguia andar com aqueles pés cravados no chão, feito pedra e o corpo rígido me fazia parecer um manequim, sem vida, enquanto seguia com os olhos fixos à minha frente. Olhar para cima não era uma opção e a estrutura do brinquedo  era tão alta que eu tinha certeza que se eu levantasse uma das mãos em um dos seus picos, Deus me puxaria.

O Zé Ramalho versão xing ling, ergueu um dos cantos da boca, exalando presunção e rebeldia e eu revirei os olhos, no ápice do meu surto, quando resolvi focar minha atenção nos mosquitos infernais picando a minha pele.

Eu me recuso aceitar que Noé trouxe essa praga na arca!

— Inferno! — reclamei chacoalhando o meu corpo e mochila juntos.

O som altivo do choque entre os objetos, chamou a atenção dele, que ao invés de me ajudar, ficou ali, com aquela cara de deboche estampada no rosto, horas depois de ter me visto rejeitar dez vezes o repelente. Eu não preciso disso, falei, convicta de que eu não me arrependeria. E eu nunca me arrependi tanto das minhas palavras. Já era noite. O verão de quase 40 graus fez questão de me castigar —  depois de um dia inteirinho naquele parque — e resolveu mandar todos os pernilongos para cima de mim. Passar um final de semana fazendo crochê com a minha vizinha teria sido melhor.

Marcos era desnecessário. Não sabia o que ele estava fazendo ali. Na verdade é isso que me pergunto todos os dias quando o vejo atravessando a redação daquela editora, com toda aquela pompa de bad boy à medida que relembro os motivos pra ele ter se enfiado na minha vida.

Sem ser chamado.
Mal educado.

— Tá tudo bem aí Isabela?— perguntou, com a sua expressão mais convencida. Ele olhou para meu braço e depois para mim, enquanto andava com aquele porte orgulhoso.

Hahaha vai achando que vou te dar razão.

—Tá, tá tudo ótimo — respondi, por entre os dentes, sentindo o enorme calombo crescer em minha pele.

Ele sorriu novamente, se divertindo com a minha reação, quando senti uma coisa estranha borbulhar dentro de mim. Poderia ser o salgadinho do almoço ou até mesmo raiva, transmitida por culpa do cachorro do meu chefe.
Primeiro o estômago, depois o coração, empurrando meu peito como se ele pudesse sair pela boca. E foi olhando para aquele sorrisinho indecente, aquelas sobrancelhas erguidas em minha direção esperando pela confirmação da minha derrota que eu não consegui me conter. 

—Eu só acho engraçado que…

—Bate, bate, bate na pooorta do céeeu…— cantarolou, unindo sua voz ao restante da equipe.

Miserável.

Voltei meus olhos para os gritos apavorantes no momento que vi passando por cima de nossas cabeças o carrinho. Em uma velocidade ensurdecedora, ele cortou o céu e deu uma volta em 360 graus, deixando as pessoas de cabeça para baixo e eu de cabelo em pé.

Supondo que o carrinho pare de funcionar no alto deste instrumento fragmentador de almas: Será que a equipe de resgate chega até lá em cima?

Minha mãe, que andava à minha frente com um balão do Mickey nas mãos, estava minimamente mais interessada no tamanho dos bíceps do amigo do meu chefe do que no meu namoro falso. Naquele dia, Caíque foi um resultado do acaso. Depois do almoço, ficamos rodeando a praça de alimentação e acabamos trombando em sua estrutura óssea, a mesma que hipnotizou a minha mãe. Marcos não imaginava que o amigo de infância também tinha tirado o dia para passear pelo parque e não poupou esforços para convencê-lo a se juntar a nós. Ele tinha ombros largos, tatuagem em ambos os braços e um porte físico de quem deveria gastar horas na academia.

Amor em doses de tequila Onde histórias criam vida. Descubra agora