Dose número 19

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Tá de brincadeira, né?

É uma pegadinha?

Corri meus olhos para fora do portão à procura de alguma explicação para aquela bendita cesta alegórica estacionada na minha calçada. Flores gigantescas e coloridas espetavam para fora do que seria um café da manhã bem calórico e extravagante, sem dúvida, tudo o que eu não precisava naquela manhã infernal.

A noite anterior havia sido péssima. Perdi as contas de quantas garrafas de uísque eu havia ingerido, horas depois de chegar em casa e ter cometido a maior loucura da minha vida. Em questão de segundos todo o meu planejamento para o final de semana foi arrancado da minha agenda transformando minha vida em uma bagunça e me causando uma exagerada crise de enxaqueca. Como se não bastasse, não consegui dormir. Passei a madrugada inteira com insônia, tentando reorganizar meus sentimentos no único lugar que eu conseguia ter paz. Minha paciência estava no lixo, então receber uma cesta carnavalesca como pedido de desculpas não foi um alívio para os meus problemas. Aquele sem dúvidas era um péssimo dia para encarar o furacão Isabela e resolver problemas domésticos.

De todas as cozinheiras, ela foi a pior. Astuta, traiçoeira e talentosa, não perdeu tempo e tentou logo me matar, colocando aqueles malditos cogumelos embaixo do molho. Não duvidaria encontrá-los dessa vez, dentro do pão, escondidos.

Recolhi a cesta gigante, com dificuldade, quando vi o cartão vermelho cair pela lateral e exibir as letras douradas. Não deixei de notar a escolha do mesmo, no formato de um coração, uma escolha infeliz da padaria que nitidamente não foi informada sobre o destinatário.

Ergui o papel, dividido entre a curiosidade e a irritação e li o conteúdo, que acabou, de certa forma, me tirando um sorriso.

- Acredita que a nova cozinheira me mandou uma cesta de café da manhã como pedido de desculpas? - perguntei à Ester, sentada em uma das banquetas da cozinha.

Suas mãos envolveram o copo de café no momento que despachei o presente sob o balcão. Seus olhos passaram de mim para a cesta, incrédula e em silêncio, enquanto eu avaliava o objeto extremamente colorido e enfeitado.

- Ela tem um gosto...

- Peculiar- completei com uma careta.

- Quer que eu a demita? Ou converse com ela?

- Não, deixa que eu mesmo falo.

Suas sobrancelhas se ergueram lançando a surpresa em minha direção, por consequência de uma atitude que eu não tinha há meses.

Eu odiava bagunça, desorganização e até hoje não havia encontrado uma empregada que superasse as minhas expectativas. A primeira, Camila, uma mulher de 59 anos, falava pelos cotovelos. Eu mal conseguia me concentrar no trabalho já que suas reclamações ecoavam pelos corredores da casa sempre que ela estava limpando. Todos os finais de semana ela ligava para alguém diferente e indiretamente, eu sabia de todos os seus amantes. Não era do meu interesse saber quem traiu quem, então logo no primeiro mês, pedi a Ester que resolvesse esse problema. A segunda, Sara, peguei roubando uma das minhas panelas, justo na época em que grande parte da decoração estava desaparecendo. A terceira, Janice, lia romances demais e esperava que algum dia tivesse a chance de ter um caso comigo. As outras foram todas iguais. Não conseguiram se adequar às exigências e acabaram pedindo demissão.

Independente do meu TOC pela organização, eu nunca me importei com a movimentação dos empregados pela casa e sempre permiti horário livre para os serviços. Mas depois das últimas experiências, preferi reduzir a carga horária a fim de evitar qualquer situação incômoda e constrangedora. Além disso, eu queria paz, sossego e só encontrava naquela casa, quando estava totalmente sozinho.

- Eu quero conhecê-la e ver com quem estou lidando. Se me convencer de que não é maluca como as outras, eu a deixo ficar.

Embora eu tivesse formas diferentes de lidar com a situação, meu instinto foi totalmente dominado pela curiosidade. Eu não precisava de nenhum encontro para despedi-la, nem mesmo confrontar o seu jeito torto e desobediente para me dar conta de que aquele emprego não deveria ser seu. Mas algo me impediu. Talvez sua audácia realmente tenha me conquistado.

Mal de nome.

O restante da manhã se estendeu rapidamente, roubando boa parte da minha atenção que foi dividida entre o trabalho e a ressaca. Eu precisava de concentração, então me tranquei dentro do escritório por horas até resolver todos os problemas da editora. Dados desatualizados, faturamento mensal e novos projetos caíram como uma bomba em minha mesa e todo o trabalho era necessário depois de meses me sentindo impotente em meu próprio cargo. Eu queria que tudo fosse perfeito para alavancar as vendas e nada poderia passar despercebido.

Passei um bom tempo analisando relatórios até ser capaz de me perder nas horas e começar a sentir fome. Por coincidência, um delicioso aroma vindo da cozinha preencheu todo o escritório, causando um estrago no estômago de quem havia passado a manhã inteira somente com um uma dose de café.

Alcancei a maçã esquecida sob a mesa quando decidi espiar o motivo daquele cheiro. Estava cedo demais para a chegada da cozinheira e Ester já havia terminado o seu turno, o que instigou ainda mais a minha curiosidade.

Abri a porta e caminhei a passos lentos em direção à sala, onde as janelas abertas permitiam a passagem do vento, criando um ambiente agradável para superar o calor. Eu encarei ambos os lados do corredor esperando encontrar algum indício de presença humana, e conferi a parte externa, inutilmente. A casa estava envolta no silêncio e o cheiro cada vez mais forte me atraiu direto para a sua origem.

Assim que me aproximei, parei meu corpo na entrada da cozinha e observei o motivo de todas as minhas distrações, bem ali, na minha frente.

Não acredito.

Mas que merda Isabela está fazendo aqui?

Suas mãos ágeis misturavam algo que parecia estar extremamente delicioso em uma das panelas ao mesmo tempo em que dançava, de costas para mim, alguma música que escutava em seus fones de ouvido. Involuntariamente, senti meus lábios se erguendo para cima enquanto observava cada um de seus movimentos animados. Era impossível não ser atraído pela sua luz.

A cesta ainda estava no mesmo local em que eu havia deixado e eu não conseguia entender como eu ainda não havia ligado os pontos antes. Coisas que só ela seria capaz de fazer, incluindo tentar me matar.

Assim que ela se virou, seus olhos, assustados como os de um coelho, encontraram os meus, segundos antes de preencher o ambiente com um grito.

Amor em doses de tequila Onde histórias criam vida. Descubra agora