Dose número 2

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Passei a manhã inteira com a cara enfiada no computador tentando encontrar inspirações que me incentivassem a escrever. Mas com o curto prazo e na minha atual situação o meu maior incentivo era não perder a única chance de sucesso que eu tinha acabado de conseguir.

Volta e meia Ayla me lançava um joinha de sua mesa demonstrando toda a sua confiança em mim. Mas eu sabia que aquilo não tinha como dar certo. O prazo era curto, meu conhecimento sobre o assunto era péssimo e a única coisa que eu pensei em escrever sobre aquele tema foi “faça o que eu digo, não faça o que eu faço”.

Eu fechei todas as abas do google, implorando por um milagre divino quando uma bolsa reluzente caiu como um tijolo sob a minha mesa. 

Acho que rezei pro Deus errado!

— Ô mocinha, pode avisar o Marcos que eu estou aqui? — Um par de pernas parou na minha frente e eu tentei conter a minha crescente aversão.

Mocinha?

Amanda Belamy era a boneca de luxo que as lojas não tinham. Loira, alta, glamurosa, fazia questão de me olhar como se eu tivesse acabado de sair de um brechó. Além disso, ela fazia parte do que eu costumava chamar de clube dos sócios fantasmas da editora. Ela quase nunca estava lá, não participava das reuniões e só aparecia pra ficar no pé do Marcos, feito pedra no sapato. Depois de dois anos juntos, em um relacionamento totalmente abusivo, eles decidiram se separar, mas ela não superou muito bem o término. Amanda se tornou uma mala e como eu era a secretária, eu sofria junto.

Eu a encarei rapidamente e desviei meu olhar para a porta da sala dele, que havia acabado de ser aberta. Assim que Marcos a viu, ele arregalou os olhos e me fez um não com a cabeça. Rapidamente ele fechou a porta e sumiu da minha vista.

— Ele não pode atender no momento, infelizmente.

Eu lhe abri um sorriso de bons amigos tentando soar convincente e ela me lançou um olhar violento colocando aquelas garras de onça sob a mesa.

— Que bom que eu não preciso ser anunciada, né fofa? — reclamou.

Oi?? 

Ela se afastou com os sapatos de salto ecoando pela editora até chegar na porta e dar duas batidas. Eu até que poderia tê-la impedido, mas Marcos não merecia a minha ajuda, não depois de anos  sendo a merdinha da garota do cafezinho.

Amanda bateu mais uma vez.
Eu sabia que se ele não a atendesse, ela entraria do mesmo jeito. E Marcos também.
A porta abriu e ela entrou.

Rapidamente, Ayla puxou uma cadeira até minha mesa e cravou os olhos lá dentro.

— Será que eles vão voltar? — perguntou. — Viram os dois juntos ontem jantando naquele restaurante do centro, num clima…

Não existia uma revista mais atenta do que a minha amiga. Seus informantes se estendiam feito uma rede pela cidade e apesar de tudo, ela ainda negava a sua paixão pela fofoca. Seus olhos estavam sempre atentos atrás das cortinas e as brigas no nosso bairro eram o seu passatempo favorito. Segundo Ayla, seu interesse era apenas ser bem informada.
A voz de Marcos sobressaiu do lado de dentro da sala e ela abriu a boca num formato de um O.

— Às vezes ele só não está num bom dia!

E desde quando ele está?

Meus dedos dedilhavam pelo teclado do computador tão rápido quanto as palavras dela. Eu precisava de uma luz, qualquer coisa que eu pudesse usar e que me fizesse parecer totalmente dentro do assunto. Além de ser o meu sonho, escrever algo ruim o bastante para não ser publicado seria o mesmo que concordar com toda a opinião que ele tinha acumulado durante todos esses anos sobre mim. E apesar dos papéis terem se invertido e eu ter mudado a minha percepção sobre as coisas em 5 anos, eu ainda queria ter razão e eu não aceitaria de forma nenhuma perder para ele.

Vinte minutos se passaram e Ayla ainda estava apoiada em minha mesa, me apresentando todo o seu monólogo sobre o relacionamento do nosso chefe, que naquele momento estava sendo totalmente ignorado por mim. Minha concentração era tanta que mal vi Amanda passar por nós totalmente descabelada e enfurecida.

— Isabela  do céu, deu ruim! Olha que chacota!

— Eu nem ligo! — reclamei com os olhos vidrados na tela do computador. — Tenho coisas piores pra me preocupar do que com a vida amorosa do meu chefe.

— Não? Achei que você ainda tinha uma quedinha por ele!

— Quem vai ter uma queda aqui é o seu salário se você não voltar agora para sua mesa Ayla! — esbravejou Marcos.

Meus olhos correram do computador para ele assustados, no mesmo momento em que Ayla arrastou sua cadeira até a mesa para começar a fazer algo não tão importante.

Isso mesmo Ayla, faz as merdas e me deixa aqui sozinha ... com ele!

Meu corpo estava congelado.

Meu Deus, será que ele escutou?

Foi tudo tão rápido que eu nem tinha reparado em sua chegada. 1-2 segundos e ele ainda estava ali, feito uma praga com os olhos vidrados sob mim.

Legal Bela, abstrai e finge demência!

Eu desviei meus olhos dos seus e digitei algumas coisas no computador, sem graça.

Será que ele tinha mesmo escutado?

— Da próxima vez que você deixar essa louca entrar na minha sala, considere-se no olho da rua.

Eu balancei a cabeça concordando e ele se afastou.
Grosso como sempre. E foi por esse motivo que eu desencanei logo no primeiro mês de estagiária. Entrei naquela editora apaixonada pelo seu trabalho e doida pra lançar meu primeiro livro. Marcos era o gênio da edição, tinha uma carreira e mente brilhantes. A admiração foi tanta que até nos beijamos na festa de fim de ano da empresa, claro, por culpa da tequila. Mas depois disso, nossa relação foi pro buraco igual a minha carreira. Ele era irritante, insensível, arrogante e nem se dava o trabalho de manter uma relação estável. E foi aí que decidi descontar minha raiva na internet. Milagrosamente ou não, o pseudônimo da Cinderela chamou a atenção de tanta gente que, com o diploma na mão e confiando no meu talento, decidi novamente pedir uma oportunidade na Contágio. Infelizmente Marcos não soube separar o profissional do pessoal e se vingou, me jogando pra escanteio. E como eu não estava em condições de irritá-lo, fui obrigada a descer do salto rosa e aceitar o emprego.

Amor em doses de tequila Onde histórias criam vida. Descubra agora