Eu acordei de repente com o som do despertador. Então, quando rolei na cama para desligá-lo, estranhei que não estava de pijama. Mas essa não foi a única coisa incomum que notei. Minha cama estava arrumada e a luz do quarto, acesa. Foi quando vi meu celular caído no chão, descarregado, e me lembrei que a última coisa que fiz foi ligar para Raul.
Ri sozinha sentada na cama. Será mesmo que eu havia caído no sono durante a nossa conversa? Mas se antes meu sorriso já estava grande, ele triplicou de tamanho quando, finalmente, consegui ligar meu celular e vi uma mensagem de Raul, que foi enviada 2:45 da madrugada:
"Acho que você pegou no sono... Boa noite, Lorena. Durma bem!"
Céus, eu devo ter virado um pimentão quando li aquela mensagem. A última vez que eu dormi com alguém no telefone foi em 1997, quando eu tinha 14 anos e namorava um garoto do segundo ano, com quem eu jurava que me casaria.
Por que somos tão imediatistas na adolescência? Aliás, o imediatismo em mim nunca teve um fim. Hoje, olhando para trás, vejo que eu vivia a minha vida como se eu fosse morrer precocemente aos 18 anos. Nunca soube esperar por nada.
Mas, naquela manhã em questão, eu acordei com um humor diferenciado. Era algo entre a alegria e a leveza. Não dava para explicar. Arrumei-me para o trabalho e desci para o primeiro andar, onde encontrei Bernardo e Gilda na cozinha.
Então, ao passar pela mesa, beijei o Bê e falei:
— Bom dia, amor!
— Tá de bom humor, mãe? — Ele me perguntou no mesmo instante.
Olhei de relance para Gilda, que sorriu ao trocar olhares comigo.
— Eu sempre estou de bom-humor — respondi, tentando esconder o fato de que eu estava mesmo tomada por uma alegria incomum.
— Não é verdade, mãe — disse Bernardo, risonho.
Eu acabei rindo junto com ele, porque, diga-se de passagem, ele tinha toda a razão. Não é mesmo todos os dias que eu acordo disposta.
— Gilda, você prepara um misto quente para mim, por favor? — Pedi enquanto tomava minha dose diária de vitaminas.
— Mãe, o Raul já chegou em Recife? — Bernardo perguntou, o que me deixou um pouco surpresa. Eu não sabia que ele estava pensando no Raul.
— Ainda não — respondi. — Ele deve chegar à noite.
— Então ele foi mesmo? — Perguntou Gilda dessa vez.
Sorri sem saber porquê e falei:
— Sim, ele... Ele queria reencontrar a avó, né?
— Tadinho! — Gilda exclamou — Eu fico pensando, como deve ter sido difícil, né? Ele, o irmão pequeno... Foi Deus mesmo que guardou eles.
Eu concordei com a Gilda até que ela disse aquela última frase. Quero dizer, não me leve a mal, mas não pode existir um Deus que permita que pessoas incríveis como o Raul e o Kevin sofram o que sofreram. Onde fica a coerência disso? Se Ele é bom, porque permitir que o mal aconteça às pessoas?
Mas eu não manifestei o meu pensamento. Ao invés disso, me levantei e saí da cozinha, indo até meu quarto. Eu havia me esquecido de colocar meus brincos.
Quando, então, eu estava a caminho do primeiro andar novamente, ouvi Bernardo me chamar. Mas o seu chamado não foi um chamado comum. Uma mãe sabe quando seu filho a está chamando normalmente e quando ele a está chamando porque tem algo errado. Por isso, quando ouvi sua voz, de certa forma, eu logo soube que alguma coisa ruim havia acontecido a Raul e Kevin.
— O que foi? — Cheguei à cozinha, ofegante.
A TV da cozinha estava ligada e Gilda aumentou o volume, deixando soar claro a voz do repórter que noticiava:
"Até o momento, foram encontrados 22 passageiros sem vida. Dentre os quais estão 16 mulheres, 5 homens e uma criança. Os bombeiros seguem empenhados no resgate que se iniciou nesta madrugada, mas, devido ao terreno acidentado do local e o tempo chuvoso, os profissionais têm tido dificuldades para encontrar as vítimas em meio aos escombros. Estima-se que ainda haja, pelo menos, 97 pessoas desaparecidas."
Eu caí sentada em uma cadeira diante daquela notícia. Não conseguia pensar em nada. Meus ossos estavam petrificados.
— Disseram que, com a chuva, um barranco desmoronou na estrada, fazendo o ônibus que ia para Recife perder o controle e bater em outro que vinha para Belo Horizonte. Então os dois caíram em uma ribanceira — Gilda contou com um pesar evidente.
— Eu falei para ele ir de avião — murmurei, desolada.
Na minha cabeça, passavam literalmente um milhão de coisas. Meus olhos ardiam e minha garganta já estava fechada.
Por que você tinha que ser tão teimoso e ir de ônibus, Raul? — Eu perguntava internamente.
— Talvez esse não seja o ônibus dele, mãe — Bernardo disse, segurando meu ombro direito.
Mas não havia palavras de conforto que fossem capazes de amenizar o meu pânico naquele momento.
— É o ônibus que ele foi, Bê. Eu tenho certeza! O próximo ônibus só saía daqui hoje de manhã. Além do mais, a cor, o nome da empresa...
Escondi meu rosto nas minhas mãos e deixei que as lágrimas viessem. Então me desesperei:
— Não pode ser que eu tenha perdido eles em tão pouco tempo!
— Calma, Lorena. — Gilda colocou uma mão no meu outro ombro, enquanto Bernardo continuava ao meu lado. — Não vamos pensar no pior.
Mas como eu não iria pensar no pior? A televisão exibia a tragédia bem diante dos meus olhos. Os dois ônibus ficaram destruídos. A chance de alguém sobreviver a um acidente tão violento em um lugar tão acidentado é quase nula.
Eu não queria perder os dois.
Eu não poderia perder os dois.
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O Malabarista - Concluída
SpiritualRaul é um morador de rua que perdeu sua mãe e, desde então, vive debaixo de um viaduto com o seu irmão mais novo chamado Kevin, de apenas 7 anos. Ele vive sem muita esperança de ter a sua sorte mudada, embora esteja sempre consolando o seu irmão, di...