Após finalizar a ligação com Carlos, recebi uma mensagem sua me pedindo para não contar a Kevin a boa notícia por enquanto. Segundo ele, seria razoável esperar, pelo menos, 24 horas. Após esse tempo, então, seria possível tirar conclusões mais certeiras.
Então inventei que precisava ir resolver uma coisa urgente da clínica. Equipei Bernardo com todo tipo de informação que ele poderia, eventualmente, necessitar na minha ausência com relação a Beatriz. De fato, ele tem sido um anjo na minha vida nos últimos dias, ajudando-me com a irmãzinha. Afinal, não era sempre que eu podia contar com meu irmão ou com meus pais para me ajudar. E eu não queria ocupar Gilda mais do que já ocupava.
Acho que, pela primeira vez em 16 meses, o trajeto até o hospital foi tranquilo. Durante todo esse tempo, eu fiz o mesmo caminho com o coração apertado. A cada vez que eu ia visitar Raul, um pedaço de mim ficava lá com ele. Mas, agora, eu sentia que estava diante de um recomeço. O futuro ainda era incerto, mas, ao menos, havia esperança.
Cheguei ao hospital pouco antes das 19:30 e fui logo até a recepção com uma ansiedade que insistia em chacoalhar dentro de mim.
— Oi, Andressa — cumprimentei a recepcionista. Tornamo-nos conhecidas nos últimos meses.
— Ah, oi, Lorena. O Dr. Carlos mandou te avisar que ele está conversando com os pais de um paciente, mas ele disse que logo, logo termina. Fiquei sabendo que o Raul acordou...
Eu não pude evitar o sorriso de felicidade e perguntei:
— Sim, sim. Será que eu posso subir para ver ele?
— Claro!
Sempre simpática, Andressa saiu de trás do balcão e apertou o botão do elevador que ficava logo ao lado da recepção, chamando-o por mim. Então, quando ele parou no térreo, entrei contando os segundos para chegar ao quinto andar.
Todo o caminho até o quarto de Raul foi cheio de expectativas para mim e, a cada passo que eu dava, a vontade de chorar de alegria e suspirar de alívio se acentuava cada vez mais. De maneira que, quando cheguei ao quinto andar, precisei parar e respirar fundo, antes de caminhar até a enfermeira que estava responsável por aquele corredor.
— Boa noite, Sarah! — Eu também havia me familiarizado com ela.
— Olá, Lorena. Está aqui para ver o Raul?
Eu assenti ansiosamente, então ela se levantou, como sempre fez nas minhas visitas, e rodeou o balcão, indo até a porta do quarto onde estava Raul, enquanto dizia num tom sussurrante:
— Ele estava dormindo da última vez que eu olhei.
— Bem, se ele estiver dormindo, não o acorde — falei, também sussurrante.
Eu havia esperado 16 meses para vê-lo de olhos abertos. O que seriam alguns meros minutos a mais?
Observei Sarah abrir vagarosamente a porta, que estava entreaberta, e, quando a ouvi conversar com Raul, senti meu coração bater na garganta:
— Que bom que está acordado! Tem uma pessoa muito especial aqui que veio te ver.
Sarah acenou para mim, me chamando, e eu, vacilante, fui até ela, sentindo minha visão ficar cada vez mais embaçada pelas lágrimas.
Então o vi.
Ele não estava mais entubado, mas, agora, tinha uma cânula nasal. Ainda havia uma série de fios ligados a ele e um soro constante gotejava ao lado do seu leito.
Assim que entrei e Sarah nos deixou a sós, demorei, pelo menos, uns 30 segundos para me orientar até sua cama.
Então, após o meu breve episódio de inércia, aproximei-me dele, sempre sob seu olhar vigilante e segurei sua mão direita que estava repousada sobre sua barriga. Seus dedos estavam finos. Ele havia perdido muito peso. Seu semblante já não era o mesmo e seu olhar, mais do que tudo, revelava seu cansaço e sofrimento.
— Raul... — Foi tudo que saiu da minha boca um pouco embargado.
Ele apertou minha mão levemente, o que me emocionou ainda mais. Foram 16 meses segurando sua mão sem receber nenhum movimento de volta. Agora, por mais fraco que tenha sido seu aperto, ele estava respondendo aos estímulos. Isso já bastava para mim.
— Você não tem noção do quanto eu sonhei com esse momento — continuei, sentando-me na poltrona ao lado da cama.
Seus olhos marejaram enquanto acompanhavam os meus movimentos. Então entrelacei nossos dedos e beijei as costas da sua mão, trazendo-a para perto de mim.
De repente, as palavras desapareceram. O que dizer a ele? Havia tantas coisas na minha mente e no meu coração que, no fim, acabei por não saber qual proferir primeiro. Preferi mergulhar no silêncio com Raul, pois, a ausência de palavras pareceu ser a melhor expressão de amor e felicidade que eu encontrei.
Então, ao cabo de pouco mais de um minuto de silêncio, Raul pareceu querer falar alguma coisa, mas ele abriu a boca várias vezes sem conseguir emitir uma palavra. E foi notável a sua ansiedade crescente diante da dificuldade em se expressar.
— Calma — falei, acariciando sua mão com meu dedão, enquanto nossos dedos ainda estavam entrelaçados.
— Sua ba-barriga... — Ele murmurou por fim, gaguejando um pouco.
— Minha barriga? — Perguntei com um pequeno sorriso, olhando para baixo, sem entender.
— Cadê?
Pensei um pouco e, então, entendi.
— Ah! Ela já nasceu — respondi, lembrando-me do meu pequeno furacão.
Um semblante confuso se desenhou no rosto de Raul e foi aí que a ficha caiu para mim. Foram 16 meses. Um ano e quatro meses. Mas, se para mim já era assustador pensar no tempo que se passou, ainda mais apavorante seria para ele.
Como explicá-lo que ele já havia completado 25 anos? Que Kevin, que aniversariava em Fevereiro, havia completado 9 anos e já lia livros inteiros? Que eu já havia dado à luz e que a minha loirinha faria 1 ano muito em breve? Como explicá-lo que o tempo foi maldoso e não parou por ele?
— Vou te mostrar uma foto dela — falei tirando o celular da bolsa e selecionando uma das muitas fotos que eu tinha da Beatriz.
Raul analisou a foto por longos segundos, como se não quisesse perder nenhum detalhe, para, depois, virar-se para mim e dizer com um esforço perceptível:
— Parece muito... Você.
Sorri feliz com aquelas palavras e olhei para a foto como se nunca a tivesse visto.
— Como ela se...Se... Se...
Raul trancou os olhos, aparentemente ansioso por não conseguir completar a frase. Então, mais uma vez, acariciei sua mão e completei a pergunta por ele:
— Como ela se chama?
Ele assentiu.
— Beatriz. Em sua homenagem.
Ele quase sorriu.
— Lembra? Você me sugeriu esse nome.
— Não lembro — ele respondeu e eu notei sua preocupação.
— Tudo bem — confortei-o.
Outro instante de silêncio se instalou entre nós. Então eu guardei meu celular na bolsa novamente.
Raul havia ficado muitos meses com a cabeça enfaixada e o resultado disso — pelo menos, eu supunha que era — foi que sua pele, na região que havia sido coberta pela faixa, ressecou, tendo começado a soltar algumas espécies de casquinhas que ficavam agarradas no seu rosto e cabelo.
Então, sentada ali, com o silêncio ainda imperando entre nós, com a mão que eu tinha livre, tentei afugentar as casquinhas grudadas em sua pele, mas tudo indicava que apenas o tempo poderia curar aquilo. Aliás, o tempo tinha um longo trabalho pela frente. Havia muito o que curar.
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O Malabarista - Concluída
SpiritualRaul é um morador de rua que perdeu sua mãe e, desde então, vive debaixo de um viaduto com o seu irmão mais novo chamado Kevin, de apenas 7 anos. Ele vive sem muita esperança de ter a sua sorte mudada, embora esteja sempre consolando o seu irmão, di...