DOIS DIAS DEPOIS
Raul equilibrou a bandeja que trazia consigo com apenas uma mão e deu duas leves batidas na porta do quarto de Lorena, que logo autorizou sua entrada.
— Trouxe uma sopa para você — disse Raul ao entrar e ver a namorada com Beatriz no colo, enquanto parecia tentar assistir um desenho na televisão junto com a filha.
O MacBook sobre o criado mudo, no entanto, sinalizava que, ainda há pouco, ela estava pesquisando algo.
— Obrigada, bebê. Mas eu estou sem fome.
— Você tem que comer alguma coisa...
Raul parou diante da cama e viu Lorena mover os olhos lentamente da TV para ele. Então, antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, o jovem rapaz completou, preocupado:
— Você não comeu quase nada hoje.
— É que eu não tô com apetite...
— Eu sei, mas é que você não pode ficar esse tempo todo sem comer. Vai te fazer mal.
Lorena desviou o olhar de Raul e pensou por um instante. É claro que ele estava querendo apenas o seu bem e ela sabia. Por isso, colocou Beatriz sobre a cama e estendeu as mãos para receber a bandeja.
— Quer que eu fique com a Bia para você descansar um pouco? — perguntou o jovem rapaz ternamente.
— Se você puder...
— Claro que posso.
Raul se inclinou sobre a cama e pegou Beatriz quando a viu esticar os bracinhos.
— Depois, eu volto para pegar a bandeja — disse Raul, indo até a porta.
— Não quer ficar aqui comigo?
O jovem rapaz deteve os passos perto da saída do quarto, antes de se virar vagarosamente para Lorena e responder:
— É melhor que você descanse. Não tem sido dias fáceis.
— Então... — Lorena pesou as palavras por um instante, antes de prosseguir: — Sobre aquela nossa conversa... Vamos mesmo esperar?
— Tudo tem o seu tempo, amor — respondeu Raul.
Lorena, então, sorriu minimamente e, apaixonada, murmurou:
— Nem parece que você é mais novo do que eu.
Raul, por sua vez, também sorriu fraco e abriu a porta do quarto, mas não saiu antes de dizer:
— Toda espera vai valer a pena, você vai ver.
— Tô doida pra ver! — brincou a loira que, por um instante, apesar dos pesares, pareceu recuperar seu jeito brincalhão.
Mas então, quando a porta do seu quarto se fechou outra vez e ela se viu ali, sozinha com o fato de que Bernardo continuava desaparecido, o choro desceu garganta abaixo junto com a pequena porção de sopa que colocou na boca.
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Raul mal havia chegado ao primeiro andar da casa quando viu Luísa e Cícero entrarem pela porta da sala. Pareciam agitados com algo e traziam em seus rostos um semblante que misturava preocupação e mágoa.
— Cadê a Lorena, rapaz? — Cícero perguntou, indo na direção da escada que levava ao segundo andar.
— Ela... Ela... Ela está lá em cima — respondeu Raul, tomado pela surpresa.
Mas Cícero, sem considerar o susto do genro, passou por ele e subiu quase correndo. O mesmo fez Luísa. Ela, no entanto, ao passar por Raul, brincou brevemente com Beatriz.
— Por que não nos contou sobre o Bernardo?! — Cícero perguntou ao entrar no quarto de supetão.
Lorena, que ainda ia pela segunda colherada de sopa, assustou-se ao ver seu pai, pois, a bem da verdade, não o via pessoalmente há quase seis meses, apesar de suas casas não ficarem tão longe uma da outra.
— Ele é o meu neto. Você não tem o direito de esconder de mim e da sua mãe o que está acontecendo com ele — continuou Cícero com uma rispidez que poucos conheciam nele.
— Acontece que, antes de ser seu neto, ele é o meu filho — retrucou Lorena deixando a bandeja de lado e se levantando. — E não há nada que me obrigue a te dar um relatório sobre o que acontece ou deixa de acontecer dentro da minha casa. Até porque foi o senhor que me mandou cuidar da minha vida. Lembra?
— Mas em momento algum eu renunciei ao meu papel de avô.
— Pode não ter renunciado ao papel de avô, mas renunciou ao papel de pai e já faz um bom tempo.
— Lorena! — Luísa saltou para dentro do quarto, indignada. — Você não pode falar assim! Em que momento o seu pai deixou de ser pai para você?
— No momento em que ele escolheu um lado, mãe. Assim como a senhora. Vocês dois! Vocês dois escolheram um lado nessa história toda. Eu tenho filhos e eu sei que, a partir do momento que eu defendo mais a um do que aos outros, eu acabo com qualquer tipo de harmonia que possa haver dentro de casa. Vocês fizeram isso!
— Isso é coisa da sua cabeça, Lorena! — Cícero exclamou, irritado.
— Claro! Porque a louca sempre sou eu.
— Neste caso, você está sendo, sim. Então você esqueceu de todas as vezes em que estivemos do seu lado? — o pai perguntou com uma veia saltada no pescoço.
— Me esqueci, sim. Porque foram tão poucas vezes que é quase impossível lembrar.
— Você é ingrata, Lorena! — Cícero cuspiu as palavras.
— Eu, ingrata?
— Sim, ingrata. Sempre teve de tudo. Nunca te faltou nada. E agora vem querer dizer que somos pais ruins porque protegemos mais a sua irmã? Ah, pelo amor de Deus! Isso é cuspir no prato que comeu.
Diante daquelas palavras, Lorena não se aguentou e começou a rir. Às vezes, quando o seu nível de estresse chegava ao limite máximo, a sua primeira reação era cair na risada. Mas mesmo alguém que não a conhece seria capaz de perceber que o seu riso era magoado e triste.
Raul, que estava no corredor que dava acesso aos quartos, tentando acalmar Beatriz que, com toda aquela discussão, começou a chorar, de repente, pensou que aquilo tinha que acabar. Já não bastava a angústia causada pelo desaparecimento de Bernardo, não podia ser que mais um desconforto fosse adicionado ao clima por ocasião da chegada dos pais de Lorena.
— Dona Luísa e Sr. Cícero, me desculpem, mas eu acho que vocês não estão ajudando — disse o jovem rapaz, deixando de lado a sua hesitação.
O casal, então, se virou ao mesmo tempo para Raul e o fitou com um olhar não muito amigável. Mas ele não se deixou abalar e continuou:
— A Lorena está cansada. Até agora, a gente não conseguiu nenhuma pista de onde o Bernardo pode estar. Estamos todos tensos e eu imagino que vocês também estejam. Então não vamos gastar o nosso tempo brigando, porque isso só vai piorar as coisas e não vai trazer o Bernardo de volta.
Cícero passou uma mão pelo rosto, como se quisesse espantar os pensamentos e, então, sem dizer mais nada, saiu do quarto da filha, descendo para o primeiro andar e indo rumo à saída. Enquanto Luísa se aproximou de Lorena e a segurou pelos dois ombros para dizer:
— Seu pai não anda bem, Lori.
— E a senhora acha que eu ando? — Lorena retrucou com rancor.
— Eu quero dizer que ele realmente não anda bem — reiterou Luísa, que saiu do quarto logo em seguida sem dizer mais nada.
Será que, algum dia, a calmaria haveria de chegar àquela família finalmente? Humanamente dizendo, era impossível ter certeza de que sim. As mágoas pareciam tão profundas e os conflitos, tão grandes. Mas para que venha a bonança é preciso que, primeiro, tenha havido a tempestade. O importante é continuar remando.
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O Malabarista - Concluída
SpiritualRaul é um morador de rua que perdeu sua mãe e, desde então, vive debaixo de um viaduto com o seu irmão mais novo chamado Kevin, de apenas 7 anos. Ele vive sem muita esperança de ter a sua sorte mudada, embora esteja sempre consolando o seu irmão, di...