No trabalho, eu não consegui me concentrar em absolutamente nada. Meu corpo estava atendendo aos pacientes, mas a minha mente estava longe, bem longe. Eu não via Raul desde cedo, quando ele saiu para a academia. Por isso, estava ansiando desesperadamente pelo horário de ir embora. Eu queria e precisava conversar com ele sobre as coisas que estavam me corroendo por dentro. De maneira que quando deu cinco horas da tarde saí da clínica sem nem olhar para trás.
Ao chegar em casa, fui primeiro recebida por Beatriz, que, como sempre, fugia de Gilda que queria lhe dar o jantar.
— Impressão minha ou você chegou mais cedo? — Gilda perguntou assim que me viu.
— Mais ou menos — respondi, deixando minha bolsa sobre o sofá. — Cadê o Raul?
— Eu acho que ele está lá nos fundos.
Ajudei Gilda a capturar Beatriz, que odiava o momento do jantar, e, logo em seguida, passei direto até a área da piscina, onde havia também um quartinho onde guardávamos toda sorte de quinquilharias. Ao me aproximar, tive uma surpresa: Raul, Ícaro e Kevin estavam reunidos ao redor de uma mesa improvisada e pareciam muito concentrados no que quer que estivessem fazendo.
Ainda estávamos em Janeiro e, à parte do calor escaldante, os meninos estavam de férias. Era tão bonito vê-los maiores. Ambos estavam com 10 anos. Ícaro cada vez mais ele mesmo, sempre fugindo do meu carinho, mas nunca deixando de ser o meu bebê. Quanto a Kevin, eu gostava de brincar dizendo que ele estava se tornando cada vez mais um verdadeiro homenzinho. Um mini Raul, assim eu o chamava.
Nenhum dos três me viu à porta, o que me deu a oportunidade de observá-los por mais tempo. Ao que parecia, eles estavam montando um carrinho de controle remoto caseiro com o auxílio de um vídeo do YouTube. Era raro ver Ícaro tão concentrado e eu devia aquilo a Raul.
Ele era tão bom para os meus filhos, eu não poderia ter pedido a Deus por mais. Seu dom em cuidar — verdadeiro presente do céu — me fazia fantasiar como seria quando os nossos gêmeos nascessem.
É claro que não dava para negar que, lá no fundo, eu tinha um pouco de medo. Beatriz ainda era tão pequena e eu já não era tão nova. Porém, era em momentos como aquele, vendo Raul tão dedicado em divertir os meninos, que eu sentia uma tranquilidade singular me invadir.
— Toc toc! — exclamei, chamando atenção dos três à porta, pois eles não me notariam ali tão cedo, de tão concentrados que estavam. — O que vocês estão fazendo?
Entrei no quartinho e me coloquei entre Ícaro e Kevin. Cada qual segurava uma chave de fenda, enquanto Raul soldava o que parecia ser o motor da pequena engenhoca.
— O Raul tá montando um carrinho de controle remoto, tia.
— E a gente tá ajudando — Ícaro completou.
— Mais ou menos, né? — Kevin disse, enquanto se contorcia de tanto rir.
Mesmo cansada e preocupada, eu me permiti, ao menos, sorrir com aquelas palavras, e eu teria fechado o sorriso quando Raul me olhou, mas notei um certo brilho em seus olhos. Ele estava feliz com alguma coisa.
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O Malabarista - Concluída
SpiritualRaul é um morador de rua que perdeu sua mãe e, desde então, vive debaixo de um viaduto com o seu irmão mais novo chamado Kevin, de apenas 7 anos. Ele vive sem muita esperança de ter a sua sorte mudada, embora esteja sempre consolando o seu irmão, di...