Capítulo XXXII - Testamento

33 2 1
                                    

O dia estava escuro, frio, nublado, triste, tal qual como eu me sentia.

Roupas negras, lágrimas, gritos de dor, cheiro a relva molhada, guarda-chuvas na mão preparados para que o céu chorasse uma última vez pela partida do meu pai.

O caixão onde o meu pai parecia estar apenas a dormir, estava rodeado por dezenas de pessoas que nunca vi.

Ao minha avó paterna chorava descontroladamente, de costas para todos, agarrada ao caixão. Ao lado dela, estava uma rapariga toda de preto, com uma saia comprida até aos pés e um chapéu com um véu de renda que não permitia descodificar quem seria. Provavelmente uma prima qualquer. Não conhecia muito bem a família do meu pai. Viviam do outro lado do mundo.

Um grande amigo do meu pai, George, que trabalhava com ele, dedicava-lhe algumas palavras.

Quando desceram o caixão, agarrei a mão da minha mãe com força.
O Noah estava do meu lado e apertou-me a cintura.

No fim, as pessoas foram passando por nós, dando condolências e oferecendo apoio.

- Evelyn, para qualquer coisa, estarei aqui - apoiou-a o George, segurando-lhe a mão.

- Obrigada George - murmurou.

- Vamos embora - pedi.

Fomos os três até ao carro e seguimos em silêncio até nossa casa.

Alguns familiares encontraram-se connosco lá. Eu só queria que aquilo acabasse rápido. Não queria falar com ninguém.

- Quem é aquela rapariga com a avó Smith mãe?

- Não sei, nunca a vi. Deve ser alguma das tuas primas. Já não as vemos há anos.

- Eu quero ir embora.

- Eu sei. Espera só mais um bocado.

*

Nessa noite, o Noah dormiu em minha casa. A minha mãe insistiu que tinha de se obrigar a dormir naquele quarto de novo. Não a queríamos deixar sozinha.

Na manhã seguinte, insisti para que o Noah fosse para as aulas. Era o dia da peça dele, eu não queria que ele suspendesse a vida dele por minha causa. Ele acabou por ir, com a promessa que voltaria rápido.

Fiquei a manhã toda na cama com o Knockles. Era a única coisa que me fazia rir agora.

- Chloe? - chamou a minha mãe, à porta do meu quarto.

- Entra mãe.

-Bom dia Knockles. Estás bom pequenino? - a minha mãe fazia-lhe festinhas quando ele correu para a cumprimentar.

- Como te sentes?

- Não sei. Sinto um vazio.

- Eu sei. Eu também.

- Hoje vem cá o advogado do teu pai.

- O advogado do pai? Fazer o quê?

- Ler o testamento dele - o seu tom era de uma mágoa tão profunda que eu só queria poder ficar com a dor dela para não a ver assim.

- O testamento? O pai fez um testamento?

- Sim.

- Vem quando?

- Depois de almoço. A tua avó também vem. Só me faltava ter de levar com ela agora.

Levantei-me, abracei-a (o Knockles saltava alegremente ao nosso lado) e dei-lhe um beijo na bochecha.

- Eu só quero que isto passe rápido.

*

Amor, já acordaste? A peça correu bem. Vamos ao almoço de convívio e depois vou ter contigo. Amo-te muito, o meu pensamento está sempre contigo.

Não respondi.

Almocei a custo com a minha mãe, nenhuma de nós tinha muito apetite.

Nunca concordei muito com a ideia de vestir preto quando estamos de luto. Achei que era como uma obrigação e não fazia sentido. Agora, que passo por isso, percebo que não tem nada a ver com tradições. Olhava para as cores alegres da minha roupa no armário, e não queria vestir nada daquilo. O preto não me fazia sentir qualquer tipo de emoção, era o que fazia mais sentido para mim.

Vesti as minhas calças de cabedal, uma camisola simples com um casaco também de cabedal. Calcei umas botas acima do tornozelo, com atacadores e desci para a sala com o Knockles ao colo.

Lá estava a minha mãe, continuando com a tendência para contemplar o chão. A minha avó, que mantinha a companhia daquela rapariga que me começava a irritar com aquele chapéu ridículo com o véu. E finalmente, o advogado dele.

- Chloe, não quero esse saco de pulgas perto de mim. Sabe muito bem que a minha roupa é de alta costura, não quero pêlos nela! - disse severamente a minha avó.

O Knockles rosnou-lhe baixinho.

- Deixe lá avó. O Knockles não parece querer nada consigo - respondi friamente, sentando-me ao lado da minha mãe.

- Boa tarde a todas. Sei que este é um momento de grande dor para vocês. Tenho a certeza que o Paul estará sempre presente de alguma forma. Ele pediu-me para ser eu a ler-vos o testamento dele, caso algo um dia lhe acontecesse. E aqui estou eu, a cumprir essa última promessa.
Ele, no entanto, decidiu quebrar algumas regras, e contornou a forma como cada uma vai herdar o que era dele. Evelyn, esta casa, bem como 60% da fortuna que ele deixou, será entregue a si. À Sra. Smith, o Paul decidiu deixar 10% da empresa, bem como os bens que o seu marido deixou ao Paul. A ti, pequena Chloe, o teu pai deixou claro que, ao terminares o teu curso e, se assim o quiseres, ficarás com 60% da empresa, o que te torna automaticamente sócia maioritária. Até lá, será o George a geri-los, tendo sempre de te consultar primeiro. Mensalmente, ele estipulou o valor de 3,000€ a serem transferidos para a tua conta poupança, mais 1,500€ para a tua conta pessoal.

- O meu pai detinha 85% da empresa. A quem é que ele deixou os restantes 15%? - perguntei.

- Os restantes 15% foram deixados à senhorita Amber. Esta foi a única herança que o Paul deixou para si. Só terá poder sobre essa percentagem quando fizer os seus 23 anos, ou seja, daqui a exactamente dois anos.

Amber? O meu pai deixou 15% aquela rapariga que estava com a minha avó? Porquê?!

- O Paul deixou uma percentagem dessas a uma sobrinha? - perguntou a minha mãe, incrédula.

- Não, Evelyn. A Amber é filha do Paul.

Thank you. ChloeOnde histórias criam vida. Descubra agora