Capítulo 2

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A escuridão da noite podia deixar a escola fantasmagórica. As lâmpadas fracas do pátio faziam as sombras das árvores dançarem no chão e tinha algo desconfortante em ver aquele lugar inteiro ser ocupado por apenas um par de pessoas.

Sáskia levou o saco de gelo até a boca sentindo sua pele queimar. Sentado na sua frente, ao lado da maleta com o arco, Roberto vez ou outra ria com algum videozinho besta do TikTok que o mantinha entretido durante todo o turno da noite.

— Achei que guardas deviam manter os olhos bem abertos.

— Achei que crianças não deviam matar umas as outras na sala de aula.

— O maldito mereceu! Não tá vendo a minha cara?!

Ele soltou uma risada mostrando os dentes amarelos.

— Não disse que não foi bonito ver o malandrinho sair chorando pelo portão.

Sáskia não pôde conter um sorriso. Roberto era a única pessoa da escola que gostava que deixassem ela de castigo, mas sabia que aquele seria um dos piores que já teve. Já eram seis e nada da sua mãe atender o telefone pra vir a escola resolver a situação. "Tem sorte de não terem chamado a polícia", disse Roberto quando a diretora Silvana deixou Sáskia sob a sua custódia.

Foi na cantina buscar uns biscoitos de água e sal e um achocolatado do lanche da noite. Lanche dos bons. Recebeu um olhar torto da merendeira Lurdes quando pediu mais uma dose para Roberto, mas no fim um grito dele do pátio foi o suficiente para a convencer. Velha capenga. Certeza que se fosse Amanda ou outro qualquer ela daria sem pensar duas vezes. Sáskia devolveu o olhar de desprezo dela e retornou para o pátio.

— E a sua mãe? Como ela tá? — perguntou ele colocando quatro biscoitos de uma só vez na boca.

— Ótima. O lançamento do livro na Bienal é daqui a pouco e seria muito legal se a filha dela pudesse comparecer, né?

— Não vou te deixar ir pra casa só porque é seu aniversário, mocinha. Esse emprego é o que paga as contas.

Sáskia colocou o copo no chão e se ajeitou na cadeira.

— Roberto, me escuta: Eu prometi pra minha mãe que iria. Ela tá pirada nesse livro a anos, eu não poss-

Ele soltou uma gargalhada que podia ser ouvida até na cantina.

— Acredite, Sáskia, tô te poupando de uma surra no seu aniversário, menina. Você não vai querer ir pra casa.

— Você não entende, Roberto. Ela...

Suspirou, tentando conter as palavras. Falar dos remédios e visitas que ela fazia ao terapeuta, talvez ajudassem, mas era um segredo que não valia a pena compartilhar.

— Ela precisa de mim. Por favor, eu tenho que ir.

— Se precisa tanto, por que não veio ainda te buscar, hein? Que mãezona irresponsável.

Sáskia o fitou.

— Cala a boca.

Ele a olhou de volta com os olhos arregalados e a boca entreaberta, desviando o olhar para o chão.

— Me desculpe, garota.

Alguns minutos se passaram sem nenhum sinal de resposta da sua mãe ao telefone, mas já esperava. A mulher tinha uma repulsa por eletrônicos e em dias em que lançava um livro nunca tocava no Nokia tijolão dela.

— Sua mãe tá...solteira, não é? — perguntou Roberto coçando os poucos fios de cabelo na cabeça.

Sáskia ponderou a resposta.

— Tá, tá sim. Ah, e eu até vi que ela tinha um perfil no Tinder, acredita? Aliás, ela até que gosta de alguém do seu estilo assim.

Pela primeira vez na noite, conseguiu um olhar genuinamente atento do homem.

— Assim como? — disse ele retirando os óculos.

— Ué, assim! Humildão, mais velho, com bom humor, mais...cheinho.

Ele se calou por um instante.

— É...então... - começou ela. - Você quer o número dela?

— SIM! — disse, entregando o celular com o aplicativo de contatos já aberto.

— Ah, mas com uma condição. Coisa besta, nada que o senhor não possa fazer.

O sorriso do homem sumiu.

— Quer meter o pé, não é?

— Uma troca justa, não acha? Posso até falar bem de você se me der o arco também, imagina só. Mamãe ia ficar caidinha.

— Você faria isso mesmo? Sério, Sáskia?

— É claro! E ninguém vai desconfiar de você. O senhor só "deixou a aluna ir no banheiro e ela não voltou mais". Facinho, facinho.

— Sim, sim. Agora passa logo o número!

Sáskia encarou o próprio telefone sorrindo para o papel de parede. A menor da família vinha ao centro mostrando o enorme algodão doce com tia Sabrina e sua mãe a abraçando de cada lado. Tia vestia aquela velha gorra surrada que ela sempre usava, que cobria as orelhas e mostrava a única mecha vermelha dos cabelos brancos que pouco tinham a ver com a face juvenil. Sua mãe vinha do outro lado com aquele sorriso doce e os longos cabelos da mesma cor em um coque. Os melhores quinze anos que Sáskia podia pedir.

— A beleza tá na família. - disse Roberto, apontando como os de águia delas eram mesmo "lindos." e "extravagantes" - Coisa única mesmo.

— Roberto, fica na sua aí, na moral. Passa logo esse celular aí.

Podia muito bem digitar o número da sua mãe, mas não teria muita graça quando ele ligasse, além de que seria mais um motivo para o sermão que receberia. Pensou bem, sabia uma mulher que ia gostar muito de receber a ligação de um desconhecido com interesses românticos.

— Tá aí. — disse, devolvendo o telefone do porteiro. — Tudo certinho.

— Muito obrigado, minha querida. Pode ir. Pule o muro ao lado da sala do segundo ano, lá é mais baixo.

Sáskia se levantou, pegou a mochila, a maleta com o arco e prosseguiu para a liberdade. Algo puxou a ponta da sua farda, a segurando. Roberto tremia com o telefone em mãos.

— O quê eu devo dizer primeiro? Mandar um áudio? Do que ela gosta além de escrever?

— Uísque. — Tentou conter o princípio de uma risada. — Chama ela pra tomar um que ela vai na hora.

— Obrigado, minha querida. Aproveite a Bienal.

Ele começou a falar ao telefone e Sáskia não pôde segurar o riso ao caminhar pelos corredores. Chegou até o tal muro perfeito para um fuga quando o seu celular tocou.

— Oi, tia Sabrina, já saiu de Manaus?

— Quem diabos é Roberto?!

— Ué? Seu mais novo companheiro de pinga. A senhora sabe que eu não posso beber ainda, então achei um pra tomar umas com a senhora.

— Menina, se a sua mãe descobre isso...

Passos apresados no fundo do corredor. Gritos de "Sáskia" ecoando.

— Sem tempo, tia! Não diz nada pra mamãe!

Ela jogou a maleta pro outro lado do muro, apoiou os pés e mãos nas rachaduras e saltou para a liberdade.

Sáskia e os Caçadores de Deuses Onde histórias criam vida. Descubra agora