Sáskia ajeitou o capuz, tomando cuidado para manter o olhar baixo e as orelhas bem cobertas. Lyra fitava as poucas barracas à procura de comida frescas enquanto caminhavam pelas ruas de terra batida, rezando para que um ou outro guarda elfo não lhes lançasse um olhar mais curioso, mas pouca era a presença dos orelhas pontudas naquela vila morta.
Hora ou outra um moleque humano passava correndo junto a turminha, brincando. Uma visão contrastante com os olhares pesados e desconfiados dos moradores. Era possível ouvir um choro ao longe, de trás do mercado onde o cheiro de carne podre subia.
— Por favor, comprem algo... — murmurou uma velho de cara pálida. — Esse tomate, vejam...
Sáskia o tomou em mãos, mas já estava podre, preto e cheirava a sangue. Ousou voltar os olhos para o homem de frente a barraca, mas Lyra apertou seu braço em alerta.
— Precisamos de suprimentos, senhor. Muitos. Onde podemos encontrar?
— Estou lhe oferecendo comida, não estou? Você e sua irmã precisam comer tanto quanto nós, menina. Por favor...
Lyra deu as costas a ele arrastando Sáskia em um puxão. Os murmúrios de lamento dele se transformaram em xingamentos conforme se afastavam da barraca, até esvaecerem ao virarem uma esquina.
— Não me dê esse silêncio julgador — disse Lyra. — Não podemos comer comida banhada em sangue.
— Eles também não, mas ainda assim...
— Vamos rezar pra não chegarmos nesse estado.
O sol já se punha entre as planícies quando chegaram aos limites do vilarejo nas árvores que encobriam um Ícaro bem descansado. Manjá e Aris foram os primeiros a correrem na direção das duas, arfando.
— Saquearam tudo. Não tem nada — disse Lyra, passando direto por eles. — Vai ter que ser ensopado hoje.
— Desde quando sopa é janta? — protestou Manjá. — Nenhuma carninha, Sáskia?
— Não. Nada.
Talvez tivesse percebido a fraqueza de sua voz, ou o olhar cabisbaixo, mas foi tia Saga que se levantou da pequena fogueira e caminhou até ela.
— Venha, você tá precisando de um bom caldinho de sopa de Monvraka. Tá gostoso.
— Sopa de raiz é pior que sopa de pedra — resmungou Aris.
Sáskia seguiu tia Saga e se juntou a todos na fogueira, mas era difícil manter um olhar inquebrável diante daqueles rostos cansados. Pediu o anel de Iemanjá emprestado para brincar com a água da sopa. Para seu alívio, ela lhe deu sem muito alarde.
Apesar das técnicas de manipulação de água de Sáskia não se provarem as melhores, a de absorber as Faíscas do Anel Divino pareciam ir bem.
— Vocês são os piores mesmo, né? Me diz, deusa: Seu povo se diverte vendo outros famintos? — perguntou Lyra.
Saga permaneceu mexendo no caldeirão, quase como uma bruxa cozinhando suas poções. Ela tomou um pouco do líquido amarronzado e bebeu, provando ele como se fosse uma chef.
— Falta um pouquinho de sal, mas já dá pro gasto!
— Ei, eu fiz um-
— Não foram eles que queimaram os campos e deixaram essas pessoas na fome. — começou Asta pegando uma das vasilhas que Saga distribuía.
— Fomos nós. — Andis murmurou. — Antes matar o próprio do povo de fome do que dar comida ao exército inimigo.
Manjá conteve uma risada entre os dentes afiados.
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Sáskia e os Caçadores de Deuses
FantasySáskia seria uma garota de dezesseis anos comum se não fosse pelos seus olhos de águia, dentes de tubarão e orelhas pontudas. Helena, sua mãe e uma fanática por mitologia, dizia usar a aparência da filha como inspiração para as raças do seu mais nov...