Capítulo 27

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A noite trazia pouco sono para Sáskia, mesmo debaixo dos lençóis mais confortáveis que pôde sentir nos últimos dias. Não ousou falar com a mãe, nem mesmo para despejar as incertezas e preocupações do dia seguinte quando a caça pelas suas vidas começaria. Não. Teria que fazer com o homem que a chamava de arma, que estava ali, ainda acordado na varanda do quarto.

Sáskia se levantou. A brisa fria mandou calafrios por todo o seu corpo quando pôs os pés no chão gélido. Os Falcos de Poleiro certamente deveriam dar mais opções aos hóspedes, como uma porta para a maldita varanda. Só isso já aumentaria a nota do hotel pra duas estrelas.

— Sua mãe vai ficar bem — disse Prometeu dando uma forte tragada no cigarro. — Só dê tempo a ela.

Sáskia se apoiou na varanda. A luz das duas luas ao céu banhava o mar que naquela noite parecia estranhamente calmo.

— Você vai ficar? — perguntou buscando o olhar dele.

— Não é comigo que você deveria estar se preocupando agora, menina.

— Ser um Caçador é isso então? Lutar por um país, servir como arma pra destruir outro?

— Você está perguntando a um homem com a resposta de outra era. — Deu outra tragada. — Até ontem Armas Divinas não podiam ser erguidas por mortais. Eu já não tenho todas as respostas.

— Mas por que não?! — Sáskia saltou se sentando na varanda, ficando de frente para ele. — Eu peguei em uma, e sinceramente, essas coisas são ridículas!

— Caçadores são criaturas trágicas, menina. A lei das três faíscas é implacável.

— Já tem tragédia demais nos mitos inventados por minha tia pra ter ainda mais nos dos seus Caçadores.

Ele apontou para o pequeno altar de madeira no canto do quarto onde uma pequena Atalanta entalhada se levantava imponente, erguendo o arco em mãos.

— Essa pestinha mal sabia como usar aquele arco.

— O quê? — Não pôde conter um riso.

— Eles eram os piores, sabe? Não eram os mais fortes, nem os mais corajosos. Eram só covardes o suficiente para não pararem no fronte das batalhas. Pra serem os últimos a lutar.

— Os sete. — Sáskia franziu as sobrancelhas. — Tá me dizendo que eles...

— A lei das três faíscas. Até mesmo nisso O Maldito Do Supremo pensou. — Ele atirou o cigarro já queimado ao mar, e se virando para Sáskia, puxou outro. — Uma Chama inteira é dividida em quatro partes, quatro faíscas. Uma arma de Eterium comum não tem nenhuma faísca, zero. Qualquer um pode usá-la, até mesmo uma magrela que nem você.

Sáskia virou o rosto para o comentário horrível, bufando. Mesmo assim a curiosidade ainda a prendia.

— Você disse que era a lei das três faísca, não das quatro.

— Você é tão impaciente quanto sua mãe... — Prosseguiu, depois de um suspiro. — Quando uma arma de Eterium mata um Deus, ela absorve as quatro faísca dele e se torna uma Arma Divina. Mas uma dessas faíscas passa para o azarado que estiver com a arma em mãos. Assim nasce um Caçador. Foi assim que conseguimos burlar a Marca do Supremo.

— Azarado, é? Ter poder de um Deus sem ter que se preocupar com uma vida imortal miserável não parece tão ruim pra mim.

— É como um parasita — continuou ele, a ignorando, os olhos ao chão como se falando para si mesmo. — A primeira faísca dá mais força e resistência e eles ficam gananciosos, tanto que quando já estão à beira da segunda faísca já é tarde demais.

Sáskia sentiu a brisa do mar levantar os seus cabelos.

— Gananciosos...como tia Saga?

— Quando a arma passa mais uma faísca para o corpo do Caçador, ele chega ao segundo estágio. Agora, o único motivo do azarado estar respirando é porque a arma divide o peso das faísca com ele. Sem ela a todo momento ao seu lado, o corpo mortal não suporta a grande quantidade de Chama e morre.

Ele suspirou uma fumaça ao ar e disse:

— É aqui que o maldito parasita começa a tomar conta da mente deles. Até mesmo olhar para um outro Caçador, ou para uma outra arma, pode ser o gatilho para o Incêndio. O estado em quem não existe mais pessoa, ou mente. Tudo que há é uma Chama presa a um corpo, desesperada para se tornar completa novamente.

Sáskia engoliu em seco imaginando quantos loucos para erguer essas armas malditas teriam morrido numa revolução que não levou a lugar nenhum. Com o silêncio de Prometeu, ousou perguntar:

— E a terceira faísca?

— Digamos apenas que nenhum Caçador que tenha amor à própria vida almeje matar um segundo Deus. Aqueles que já chegaram a segunda faísca, por outro lado, só podem aproveitar do pouco tempo que resta antes da maldita Chama os consumir por completo.

Sáskia voltou-se para encarar a face jovial da pequena Atalanta.

— Ela tinha medo. Os sete. Eles não queriam..

— Não olhe para ela assim — disse ele caminhando de volta para a cama ao lado do altar. — Nem eu nem você podemos julgar a escolha dela. De nenhum deles.

Sáskia e os Caçadores de Deuses Onde histórias criam vida. Descubra agora