Capítulo 43

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Sáskia conhecia bem aquele olhar, já o viu no espelho mais vezes do que desejava. Andis permanecia sentado no sofá encarando o chão, não ligando para as piadas bobas da oceaníde Iemanjá. Algo que para Sáskia já estava se tornando insuportável.

— Um bardo, um mago e uma prostituta entram num bar...

Lyra revirou os olhos, ainda apoiada no cajado ao lado da oceaníde. Já estava prestes a estragar a piada novamente quando um baque veio de cima, fazendo o bunker inteiro tremer.

— Outro deus?! — gritou o feérico se encolhendo na poltrona. As brancas asas já em pé como orelhas de coelho.

Sáskia se levantou da poltrona em um pulo e correu até a pequena janela que dava visão para a rua. Espiou por entre ela, na altura da calçada, tendo a visão nada agradável de um senhor tentando se soltar da pilastra que esmagava as suas pernas.

— Droga...

— Então era mesmo um deus?!

Todos menos Andis correram até a janela e, empurrando uns aos outros, se revezaram expiando a agonia do homem.

— Pfft! — desdenhou Iemanjá — Foi só uma pilastra do templo que caiu encima do cara.

— Não sabe dos privilégios que temos, Manjá?! — exclamou a Mági. — De estar aqui nesse porão, protegidos desse...ataque. Tenha o mínimo de noção!

Ela caminhou de volta à estante onde estava sentada, balançando os braços como uma menina entediada.

— Por que trancaram a gente aqui mesmo, hein? A gente é quem pode lutar, ué!

— Porque se matarem todos nós, acabou. Nós somos a única resistência, Manjá!

— Então, isso que dizer que somos o alvo. — apontou o feérico, sentando-se de volta na poltrona, levando as mãos à cabeça. — Eles estão atrás da gente, de nós!

Manjá riu, afastando os pálidos cabelos verdes do rosto aquático.

— De você eles não tão nem a pau, rapaz! Quem ia querer lutar com um fracote que mal segura a própria Arma Divina?

Ela se levantou em um pulo , apontando para Sáskia no fundo da sala.

— Você. A esquisitona chamou por você! Por quê?

Lyra parou por um segundo no seu princípio de reclamação e se voltou para Sáskia com aqueles olhos violetas arregalados.

— Ela chamou pelo seu nome no último instante, sim. Não chamou?

— Você absorveu a Chama dela inteira e nem se machucou! — O feérico se agarrou aos pés de Sáskia, a fitando como se fosse realmente um messias. — Você... você é mesmo a Guardiã?

Sáskia voltou os olhos para um Andis ainda cabisbaixo, tentando conter o desconforto de ter alguém ajoelhado diante de si.

— Ele e a irmã acreditam que sim.

Uma inconveniente Manjá fez a maldita pergunta.

— Que cara de papel é essa? Tinha um caso com a mági lá ou algo assim? — O seu rosto se acendeu em um brilho infantil. — Oh, não me diga que é por causa daquele anão?!

— Cala a boca, peixe bagre! — A voz dele soou, seca, ríspida.

Como percebendo o que tinha dito, tomou um longo suspiro e levou as mãos ao rosto contendo lágrimas que já brotavam dos olhos.

— Nossa, foi mal. Sabia não.

— Manjá! — chamou Lyra, a voz baixa. — Já chega.

A garota oceaníde resmungou algo e voltou a brincar com o anel na mão esquerda girando ele, levantando e descendo a água da jarra na mesa ao lado

Sáskia soltou-se do agarre de Killian, o atirando na poltrona mais brutalmente do que inicialmente desejou. Para seu alívio ele se calou na sua história de messias e se reservou ao silêncio.

Lyra resmungava algo para si mesma, inclinada contra o cajado, baixinho. Ergueu os olhos e elevou o tom de voz, preenchendo a sala inteira.

— A senhora mági a chamou de Morrígan, não foi?

Andis tomou um momento antes de responder.

— Era a filha mais velha. A dona Zilda nunca superou a morte dela e nos últimos anos...a via em todos os lugares. As poções ficaram cada vez mais caras com a guerra e Zill não conseguia pagar, só com o dinheiro da barraca ela, não.

— Nos textos antigos de Glacies, há menções sobre uma deusa psicótica, ligada a banshees e amante ferrenha da guerra.

Manjá estalou a língua.

— Pula a aula de história, Lyra. Você quer chegar aonde?

— O quê eu quero dizer é que aquela mulher não era uma deusa comum. As poucas histórias dela a citam como uma maluca com sede por sangue e guerra. Diferente dos outros deuses, viver em sociedade para ela era quase impossível.

Sáskia cruzou os braços.

— Ela era uma tarada por guerra, mas e daí?

— E daí... — começou Lyra, se sentando no sofá ao lado de Solandis. — Que só uma psicótica como ela pra fazer um ataque direto a uma cidade cheia de Caçadores assim. O que quer dizer...

— Se realmente tivessem outros deuses não deixariam ela fazer uma burrice dessas — apontou Andis.

Sáskia se encolheu na poltrona, engolindo em seco.

— Então o que diabo a gente tá fazendo aqui?! — Manjá se pôs de pé, caminhando para a escada. — E eu aqui morrendo de fome à toa.

— Tem algo que não sabem sobre a Fenda — começou Sáskia, olhando para Andis, quase esperando por um aceno de permissão. — Sobre o rei de Vale. Sobre os pais de Esther.

— Sáskia, não é exatamente a hora pra isso.

— Fofoca da corte de Vale dos Imortais? — Manjá já dava meia volta, e a passos largos caminhou até a poltrona ao lado de Killian, se sentando como uma criança atenta. — Fala logo!

— Eles não vão acreditar em nada que disser — riu Andis. — Não vão!

— Não custa nada tentar.

— Tentamos por dois séculos! Não funcionou.

Manjá deu de ombros.

— Conversinha desses Guardiões? E eu achando que ia ser uma fofoca das boas, que saco.

Killian a tomou por ombro, atraindo um olhar curioso dela.

— Fadinha?

— Por favor, vamos ouvir. Iemanjá, te peço pelo bem de nossos povos.

O rosto azulado dela ficou vermelho pela primeira vez naquela tarde.

— Não me chama assim, seu idiota — disse ela cruzando os braços e se afastando dele. — Tá, pelo bem de nossos países eu...eu escuto.

Sáskia começou e, tinha que admitir, tentar explicar uma escola e um porteiro para aquela plateia não era tarefa fácil.

Sáskia e os Caçadores de Deuses Onde histórias criam vida. Descubra agora