Capítulo 10

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Ela parecia linda naquele vestido negro, acenando para as pessoas de cima do palco com o sorriso que Sáskia tanto amava. Nas mãos, a multidão carregava o tão aclamado novo livro, devidamente autografado pela grande escritora Helena Santos. Se apenas soubessem a grande mentirosa que ela era.

Tia Saga a cutucou da outra cadeira tirando seus olhos da mãe e os voltando para ela. Era estranho a ver toda arrumada com a cara cheia de maquiagem e não lembrar do dia anterior, dos cabelos bagunçados enquanto fuçavam caixas e mais caixas de documentos. A falsa certidão de nascimento ainda estava lá, talvez como uma lembrança que sua mãe não quisesse esquecer.

Também era difícil tirar da mente a primeira foto da mãe ao chegar ao novo mundo, ainda com os cabelos pretos e mal conseguindo segurar a câmera. A imagem era borrada pelo tempo, como se tivesse sido tirada décadas atrás e não meros quinze anos.

— Olha só quem tá ali — disse tia Saga apontando para além da multidão, para um trio parado próximo ao estande. — Sua mãe trouxe companhia.

A tal chamada Deusa Amaterasu permanecia ali com aquele crachá de cosplayer ao lado do homem de tranças vermelhas. Do outro lado dela um rapaz um pouco mais alto que a própria elfa se segurava ao seu braço, tateando o ar quando ela lhe ofereceu uma garrafa d’água.

Ele carregava uma bainha vermelha na cintura, quase tão rubra quanto os cabelos raspados. As cicatrizes em ambos os olhos lembravam Sáskia da sua própria, a questionado se o próprio elfo não teria tentado os cortar assim como ela um dia já fez.

Mas algo nele era estranho, talvez o peitoral avantajado que parecia formar curvas de seios. As palavras de Exu naquele beco ecoaram pela mente de Sáskia. "Aberração"

O pensamento das coisas que aquele pobre rapaz teve que ouvir por ser apenas quem era deixou Sáskia enjoada. Tinha ouvido as mesmas palavras por motivos diferentes, mas não podia deixar de sentir a dor dele. Ninguém merecia ser chamado assim.

Helena discursou sobre o livro, sobre como tinha surgido com a ideia da forma mais natural possível, como se não tivesse três Deuses a observando naquele momento. Sáskia ouviu tudo em um silencio velado esperando pelo momento em que a chamasse pro palco com a conversinha de “inspiração pra história”. Para o seu alívio ela encerrou a apresentação antes, e desceu as escadas do palco para os fundos do estande.

Amaterasu e Exu a seguiram, passando pela segurança com um chamado de permissão de Helena. Sáskia se levantou da cadeira em um pulo, quase tropeçando no próprio vestido.

— Não, Sasá. — disse Tia Saga a tomando pelo braço. — Deixe sua mãe.

— Eles podem matar ela! Você disse que eles estão aqui por vingança!

Tia Saga se levantou calmamente deixando o seu livro sobre a cadeira.

— Eles não estão aqui por ela.

Sáskia tateou o ar quando ela arrancou o seu exemplar das suas mãos, o deixando junto ao dela como se fosse apenas um papel.

— Não, eu quero...

— Vamos, Sasá. Vamos esperar ela no carro.

E saiu, a puxando a princípio, até o momento em que Sáskia deixou de resistir. Caminharam até o estacionamento enquanto Sáskia tentava de todas as formas caminhar naqueles saltos altos. Desistiu quando chegaram ao carro, trocando com as sandálias de tia Saga antes que os pés queimassem no asfalto fervente.

Ousaria perguntar se existiam saltos altos em Etéria, mas já havia feito perguntas demais para tia, com respostas muito provavelmente desatualizadas.

Sua mente vagou pelos contos das criaturas mágicas, das escolas de magia de Artco, pelas fadas, vampiros e lobisomens caçados por guildas de aventureiros.  Era uma boa forma de se entreter pelo menos até a Helena chegar.

Ela surgiu ao longe, caminhando lentamente e felizmente, desacompanhada. Sáskia colocou a cabeça para fora do carro, a fitando, soltando um suspiro de alivio de ainda ver ela inteira. Ela se aproximou a passos rápidos, entrou no carro e fechou a porta em um movimento.

Estava ofegante, e suor já escorria da sua testa grudando os falsos cabelos brancos à testa. Antes que Sáskia pudesse dizer alguma coisa, ela deu a partida e apenas disse:

— O cinto, Sabrina — Fitou a “irmã” pelo retrovisor. — Por favor.

Tia Saga riu, afivelando o cinto.

— Pois é, as vezes esqueço que não sou mais indestrutível.

Helena estalou a língua, suspirou fundo e pisou no acelerador. Sáskia permaneceu em silêncio enquanto saiam do parque, hora ou outra fazendo força para a garganta deixar as palavras saírem.

Pararam em um sinal vermelho e Helena fez menção de ligar o rádio, mas Sáskia tomou a sua mão, a impedindo.

— A gente só quer conversar, mãe.

Ela riu entre uma suspirada.

— Ora, Sáskia, vamos, você sempre gosta de ouvir as notícias.

O semáforo abriu e ela pisou, voltando os olhos rapidamente para o para-brisa.

— Mãe, por favor... — Tocou gentilmente o ombro dela. — Por favor, vamos conversar.

Helena apertou os olhos e inspirou fundo, os abrindo novamente em um suspiro.

— Eu só queria proteger você. Queria que vivesse uma vida normal, não como uma arma, não como um... apenas como uma menina normal.

— Por isso fez a droga de um acordo com o Exusinho?! — exclamou Saga. — Ia vender o meu pescoço pra ele também ou só o do Prometeu?

— Eu fiz o que foi melhor pra minha família. — Lançou um olhar afiado para tia Saga pelo retrovisor, mas logo depois inspirou. — Pra nossa família.

— Você podia ter me contado. — disse Sáskia se inclinando no banco. — Bem, eu ia mesmo ficar pirada da cabeça como fiquei quando tia me contou — riu. — Mas ainda assim, seria melhor do que pensar que você... tinha se perdido na própria mente.

— Sinto muito, filha.

— Todos sentimos, Helena. Eu pessoalmente, queria dizer pra você mais cedo, sabe, Sasá?

— Como pode dizer isso depois do que você fez? Você quase a matou!

Sáskia se voltou para o banco de trás.

— Tia?

— Foi um acidente, um imprevisto. Bem menos pior do que mentir pra própria filha e ainda... — Pegou os cabelos de Helena em mãos. — Bancar a Mági de plantão.

— Eu estava protegendo ela, protegendo você! Pode ter milhões de anos de vida, mas não passa de uma criança que não pensa nas consequências dos seus atos, Saga! — Ela riu num deboche que Sáskia poucas vezes viu. — Hora ou outra essas suas orelhas iam acabar te deixando num laboratório.

— Tem razão, mas eu sei como me proteger. Diferente de uma criança, jogada ao mundo tentando se descobrir, sendo chamada de monstro.

Sáskia segurou o peito que já doía. As memórias vieram dos dias no banheiro com a mãe, da tinta que passava nos brancos cabelos, do choro ao sentir ela escorrendo pelo corpo, sem deixar nenhuma cor nos fios molhados.

— E quando a tão aclamada Olímpia foi parar escondida no próprio quarto, fissurada no livro do passado dela, acha que isso foi o que ajudou a sua filha??

— Para! Você mal vem ver a gente, não faz ideia, Saga! — gritou. — Sáskia, por favor, diga a sua tia...

Sáskia escondeu o rosto entre as mãos e deixou tudo sair. O silêncio veio como resposta, seguido de um choro baixinho ao seu lado, tão fraco quanto sua voz quando tentava falar.

Seguiu a viagem tentando conter as lágrimas, respirar e parar com aquilo. Mas continuava saindo, como se preso por alguma coisa. Mesmo quando chegaram em casa, a maldita dor no peito não passava.

Foi encontrar conforto na própria cama, no travesseiro que outras tantas vezes conheceu seu choro. O abraçou, e ali mesmo fechou os olhos, esperando que o novo dia talvez trouxesse um alívio para seus olhos inchados.

Sáskia e os Caçadores de Deuses Onde histórias criam vida. Descubra agora