Capítulo 46

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Rolar para lá e para cá certamente não traria o sono que Sáskia tanto desejava, mas continuou tentando mesmo assim. As camas dos quartos do palácio real podiam ser as mais confortáveis de toda Camelot como diria Andis, mas naquela madrugada não serviam ao descanso dela.

Olhou para o arco no pé da cama, a arma que não lhe pertencia. O fardo que talvez não devesse lhe pertencer também.

Talvez pudesse ir até o quarto de Asta e Aris, conversar um pouco. Certeza que ouviriam suas lamúrias sobre o peso de guiar um bando de crianças pro território inimigo. Mas talvez...

Soltou um longo e pesado suspiro tentando afastar a insegurança que já se apoderava. Ergueu-se em um pulo e caminhou até a porta aos bocejos.

Sua mão mal tocou a maçaneta quando ela girou de repente, vagarosamente. Sáskia deu um passo para trás, já correndo de volta para o arco.

Dois pequenos chifres negros se projetaram entre a abertura da porta já aberta, seguidos por uma pálida mão vermelha.

— Sáskia? — murmurou Killian ainda detrás da porta. — Está acordada?

Sáskia soltou um riso curto.

— É só bater, Killian — disse ela, colocando o arco de volta no lugar. — Pode entrar.

Ao perceber o que tinha dito, imediatamente se defendeu:

— Não quer tentar nenhuma gracinha, né?!

— Não! Não! É só...

— Por que não bateu na porta então?

— Não queria acordar os outros! E também, esse tipo de madeira meio que machuca...

Sáskia sentou-se na cama, de braços cruzados agradecida pela camisola ser grossa o suficiente.

— Não consegue dormir também?

— Sim...quero dizer, não!

Deixou escapar uma risada e permitiu que entrasse. Vagarosamente ele entrou, quase tropeçando nas calças do pijama longas demais. Mais lentamente ainda mastigava algo, tomando cuidado com as palavras.

— Você não precisava pegar um — disse Sáskia puxando a gaveta da cômoda, revelando o estoque de Chicletes de Linguagem infinita — Andis me deu bastante.

— Agradeço muito se me puder dar um. Esse...já está quase acabando.

Sáskia atirou um na direção dele, mas foi com tanta preguiça que não calculou a força. A goma já estava para cair ao chão quando Killian, em um movimento rápido, apanhou ela.

— Às vezes esqueço que vocês tão na primeira faísca.

— Às vezes queria não estar em nenhuma. — disse ele, pondo-o na boca. — Seria melhor assim.

Sáskia o fitou de cima a baixo. O longo pijama cobria quase todo o corpo, desde os braços até as pernas, quase como uma capa protetora.

— Esse treco não é meio grande pra você?

— É sim. — Ele apontou pra cama. — Posso?

Sáskia acenou com a cabeça e ele se sentou ao seu lado.

— Mas era a única coisa grande o suficiente pra cobrir minhas mãos e pés.

— Tem medo de que uma manicure do capeta apareça? — riu.

— Manicure? Não, não sei o que é isso, mas é que...essa casa é toda feita dessa madeira. Minha pele não reage bem a ela.

— Você tem alergia a madeira de carvalho negro? Mas...a empunhadura da lança é feita dela também, não é?

Ele ficou em silêncio por um instante, cabisbaixo. Sáskia tomou as mãos dele devagar revelando as palmas cheias de queimaduras por baixo do pano.

— Killian...

— A empunhadura ficou tanto tempo junto a lâmina de Eterium que adquiriu as propriedades dela. Já tentei quebrar, trocar por outro, mas ela nunca rachou.

Ele as cobriu novamente.

— Meu tio tinha a mesma doença. As mãos dele nos últimos anos de vida, Sáskia...eu não conseguia olhar pra ele.

Sáskia tomou os lençóis em mãos, os apertando, recordando da dor das rédeas. Um arrepio frio percorreu todo seu corpo.

— Ele morreu na batalha de Kaeden, lutando contra o tio da Lyra. Minha mãe deu a vida de centenas de soldados para recuperar a lança, para não deixar ela cair nas mãos dos mági. Tudo por uma lança vermelha.

— Eu sinto muito Killian.

— Ele tinha me prometido, Sabe? — Ele riu, talvez mais para si mesmo do que para Sáskia. — Me prometeu que eu não teria que arcar com esse fardo, que iria pôr um fim nas gerações de Caçadores, nessa maldição.

Sáskia segurou a mão direita dele, olhando nos seus olhos.

— Seu tio era um homem bom.

— Ele era, mas não podia fazer o que prometeu. Era uma utopia, mesmo para ele. Talvez naquele dia em Kaeden ele tivesse encontrado a paz.

Killian se levantou enxugando uma lágrima que já escorria lentamente pelo seu rosto. Foi até a cabeceira da cama e sem cerimônia pegou o arco em mãos.

— Killian, na-

— Não sinto nada. Nenhum calor, nenhuma dor. Nada.

Ele foi até a janela ao lado da cama e a abriu deixando a luz branca do luar entrar e iluminar o arco. Estava tão branco quanto o quando ainda estava na posse de Atalanta, pálido como a lua.

— Não sei se já viu uma arma de Eterium sem nenhuma faísca embutida, admito que eu também não. Mas isso... — Ele deu o arco nas mãos de Sáskia. — Aposto que se pareceria muito com isso.

Sáskia cerrou as mãos envolta da empunhadura, fitando os olhos afiados de Killian.

— Killian, acho melhor a gente ir dormir. Amanhã vai ser um longo dia afinal de con-

— Você sabe, Sáskia — disse ele, se agachando e tomando as suas mãos. — Você sabe o que você fez, mesmo que não saiba como.

— Não podemos pensar nisso agora. Parar Esther é o que importa.

— E aí o quê, Sáskia? Depois? Eu não quero que os meus sobrinhos tenham que morrer como meu tio morreu! Não quero que crianças como Lyra tenham que ir pra um campo de batalha.

Sáskia se calou, se perdendo na voz do feérico que ecoava nos seus pensamentos.

— Sua mãe faria a coisa certa, não faria?

Sáskia apertou as mãos dele, mordendo os lábios.

— Ainda temos tempo, Sáskia. Não tanto, mas ainda há tempo. Andis, Lyra e Manjá já estão quase completando dezoito anos! Se você começar a tirar a chama das armas agora, talvez ainda tenham tempo para não chegarem na Segunda Faísca.

— Você quer que eu roube eles? Que eu roube as Armas Divinas, o motivo pelo qual eles viveram todas as suas vidas?!

— Quero que dê uma vida de verdade a eles.

Sáskia se levantou levando as mãos à cabeça. Xingou baixinho o suficiente para não acordar os outros e se recostou na escrivaninha.

— Tenho que conversar com eles antes.

— Manjá e Lyra jamais iriam concordar e Andis está muito focado em matar Esther para deixar a oportunidade de chegar à Segunda Faísca passar. Você tem que ser discreta.

Ele se levantou, e soltando um longo suspiro, continuou:

— Comece devagar, sutilmente. Brinque com elas casualmente. Pode não ser muito, mas em alguns dias ou semanas talvez já tenha sugado toda a chama daquelas malditas armas.

Sáskia se calou, e levou as mãos a boca roendo as unhas. Seu silêncio trouxe um penoso estalo de língua de Killian que passou por ela a passos largos em direção à porta.

— Pense nisso, Guardiã. Por mim e por eles.

Sáskia e os Caçadores de Deuses Onde histórias criam vida. Descubra agora