𝒄𝒂𝒑𝒊́𝒕𝒖𝒍𝒐 𝟒𝟕 - 𝒂𝒊𝒏𝒅𝒂 𝒆𝒔𝒕𝒂́ 𝒆𝒎 𝒕𝒆𝒎𝒑𝒐

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Naomi's POV

Montreal, Canadá.

Domingo: dia de corrida.

Lucca ainda estava dormindo quando acordei, enlaçada pela cintura por seu braço. Era uma posição confortável, sem dúvida alguma, mas a súbita percepção de que eu não estava no meu próprio quarto e - se opondo a um dos meus princípios básicos de nunca, nunca dormir sem roupa - inteiramente nua me fizeram despertar rapidamente.

Acho que eu estava, no melhor dos sentidos, tão exausta da noite anterior que nem me dei a decência de empurrar alguma peça de roupa pescoço abaixo antes de dormir, tampouco cheguei a me cobrir. Mas, bom, eu estava sob um cobertor. E isso me impediu de conter o sorrisinho bobo que me tomou os lábios.

Eu poderia ficar ali o dia inteiro, mas precisava voltar ao meu quarto e, além de tomar o banho pelo qual meu corpo implorava, avisar Aya que eu ainda estava viva - e se eu pudesse ir até lá antes de todo o hotel acordar, melhor ainda. Por isso, tomando cuidado para não acordá-lo, tirei seu braço de cima de mim com o máximo de delicadeza que me cabia e sentei na beirada da cama.

Antes que eu pudesse raciocinar sobre o que estava fazendo, me inclinei para dar um beijo rápido na têmpora de Lucca, que não dava nem sinal de que queria acordar. E ainda bem.

- Deus - sussurrei, olhando para o quarto. - Que zona.

Meu vestido estava de um lado da cama, o sutiã do outro, as roupas de Lucca espalhadas pelo chão, um sapato meu em cada canto do cômodo e consideráveis pedaços de caco de vidro próximos à mesinha, provavelmente de um copo do qual eu podia me lembrar com algum esforço. Cobrindo os seios com os braços cruzados, comecei a humilhante busca pós-sexo pelas minhas roupas.

Não pude conter o gemido de dor quando um pedacinho de vidro se afundou na sola do meu pé, tirando um pouquinho de sangue. Já coberta pelo sutiã e pelo vestido - o paradeiro da calcinha, no final das contas, era um mistério -, me sentei na cadeira próximo à porta para espremer o fragmento para fora.

Um fio vermelho e rápido escorreu pelo meu polegar quando tirei o caquinho, mas nada alarmante, então só o joguei no lixo e segui a vida. Juntei os dois saltos em uma mão só e, depois de me abaixar para pegar o cartão do meu quarto, deixei o de Lucca para trás.

Por um milagre, o elevador estava vazio durante todos os três andares que percorri, mas ao chegar no meu andar, a presença de uma pessoa encostada na parede oposta à da porta da cabine fez meu coração parar por um segundo.

- Estava transando, não estava?

- Puta que pariu, que susto! - Exclamei, levando a mão sem os sapatos até a testa. Guilherme arqueou uma sobrancelha, com certeza achando graça da situação. - Caralho. Nossa, me dá um segundo, quase infartei.

Enquanto eu me recuperava do choque, o rapaz ria daquele jeito cansado com o qual eu infelizmente estava começando a me acostumar. Assim que me recompus, passei por ele, seguindo meu rumo até a porta do meu quarto.

- E estava, sim - respondi sem olhá-lo, sabendo, no entanto, que me seguia de perto. - Aya e eu saímos pra comer alguma coisa ontem e, bom, rolou com um canadense que estava lá.

- E foi bom? - Ele ainda ria.

- E você - franzi o cenho, mudando de assunto rápido o bastante para não falar do quão bom Lucca conseguia ser -, o que faz aqui?

Jesus, Naomi, a cara nem treme?

- Tô tentando falar contigo desde ontem - ele explicou, esperando minhas inúmeras tentativas de abrir a porta com o cartão. - Bati aqui, mas não tinha ninguém, então achei melhor voltar hoje cedo.

Uma onda de compreensão me acertou em cheio no peito quando a luz verde se acendeu na fechadura.

- Não conseguiu a vaga na Williams - ergui o olhar para o sorriso triste que ele deu, escorado na parede ao lado da porta. - O que aconteceu?

- Posso te contar lá dentro?

Pisquei algumas vezes, percebendo que minha mão repousava como uma idiota na maçaneta.

- Claro, claro - empurrei a porta, jogando os sapatos em um dos cantos do quarto. - Só vou tomar um banho e a gente conversa, tudo bem?

Meu primo assentiu, e estranhei quando ele se sentou na beirada da minha cama sem que eu nem ao menos precisasse dizer qual era.

- Você nunca gostou muito do lado da parede. - Explicou simplesmente e deu de ombros, e foi a minha vez de sorrir sem muito esforço, me aproximando dele.

Passei a mão pela lateral do rosto do Gui e precisei conter a súbita vontade de chorar quando vi o tamanho da chateação que havia ali. Ele realmente estava contando com aquilo, com a chance de se associar a uma Academia. Porra, às vezes eu odiava aquele esporte.

- Ainda estamos em junho - lembrei, pegando uma de suas mãos quase cobertas pela manga da blusa de frio. - A Silly Season nem começou ainda, Drugo também não tem nada no radar. Ainda está em tempo, Gui.

Enquanto ele assentia, seu olhar caiu para onde minha mão se juntava à dele, e pude ver o cenho franzido.

- Que isso? - Guilherme virou minha palma para cima, passando o polegar na manchinha vermelha que estava ali. - Naomi, que sangue é esse?

Nem fiz questão de recolher a mão para mim, de tão boba que a resposta seria.

- Um caquinho de vidro - expliquei, simplesmente, passando o dedo médio por cima do rastro discreto para limpá-lo. - Viu? Pronto.

Só que a feição do meu primo não relaxou: se ergueu para mim para que seus olhos pudessem analisar cada milímetro do meu rosto, procurando algum sinal de mentira.

- Você está escondendo alguma coisa.

- Não estou.

Dei de ombros, rolando os olhos e torcendo para que ele não insistisse no assunto. Vendo que o estranhamento ainda não tinha se dissipado do rosto à minha frente, me sentei ao seu lado na cama e - com um cuidado especial para ajeitar o vestido, porque nem toda a intimidade do mundo explicaria aquilo - coloquei o pé minimamente machucado em cima do joelho.

- Aqui - coloquei o dedo na sola um pouquinho suja pelo caminho que fiz descalça, mas não o suficiente para esconder onde o fragmento do copo havia perfurado. - Viu? Pisei em um quando estava saindo do quarto do cara.

Sem parecer plenamente convencido, Guilherme ergueu os olhos castanhos para mim. Fazia algumas boas semanas desde que eu o havia visto pessoalmente, e o efeito de um bom número de noites mal dormidas se mostrava escuro nas olheiras que ele carregava. Mas ainda era o Gui.

Ainda tinha os cachinhos parecidos com os meus e a manchinha cinza na íris do olho direito. Só estava cansado, exausto. Mas ainda era o meu Gui.

- O que aconteceu? - Perguntei, baixinho, e desarmei o resquício defensivo e superprotetor que lhe restava.

- Não - ele desviou o olhar para a porta à nossa frente, deixando os ombros caírem. - Não deu certo.

Guilherme tirou os tênis antes de colocar os pés sobre a cama, para poder abraçar os joelhos entreabertos. O nó na minha garganta mal me permitia falar, então as palavras saíram quase entrecortadas demais para serem compreensíveis:

- Seu pai não deu o dinheiro.

Mas ele entendeu, e balançou a cabeça em negativa antes de afundar a ponte do nariz em uma das mãos. Passei um dos braços pelas costas que subiam e desciam para contornar alguns soluços esporádicos, deitando minha cabeça em seu ombro, sem saber exatamente o que falar.

Por isso, só fiquei ali. Abracei o tanto que pude, pelo tempo que pude, do jeito que pude - daquele que não resolve muita coisa, mas mostra que pelo menos você está ali - e tentando ignorar a culpa crescente no meu peito por estar escondendo algo importante de alguém que me contava absolutamente tudo.

- Ainda está em tempo - repeti, dando um beijo leve em suas costas.

Eu ia contar. Em algum momento, eu ia contar.

FLYING LAP [HIATUS E REVISÃO]Onde histórias criam vida. Descubra agora