Mariana ainda estava indignada consigo mesma. Se questionando, onde ela estava com a cabeça, quando simplesmente escreveu aquele bilhete e o deixou junto do prato com as fatias de bolo que dona Amélia lhe havia pedido para entregar ao padre, quando ela saia para sua aula com o pequeno João.
Como sempre saia cedo para não se atrasar, não custava fazer o favor a gentil senhora. Fora o que ela não admitia nem para si mesma, que adorava a oportunidade de rever Paulo. Porém quando chegou a casa paroquial, ele não estava, ela notou a porta apenas encostada, e decidiu deixar o prato sobre a mesa da cozinha.
Devia ter parado por ali, mas não. Ela tinha que fazê-lo saber que ela esteve ali. E movida por um impulso, escreveu o bilhete.
Ela tentava dizer a si mesma que não fez nada demais.
Foi um simples bom dia, não foi?
-Mariana, essa junta com essa aqui? Não cabe tudo.
João apontava algo no caderno, ao que ela sequer se lembrava do que o menino estava falando. Se sentindo culpada por estar tão distraída desde que chegara, sacudiu a cabeça e dedicou toda a sua atenção a João.
-Não querido. Sempre que o espaço não der, você separa a palavra com um tracinho e continua na linha de baixo. Se a palavra tiver ss ou rr, você separa eles com o traço, entendeu?
-Mas eles são irmãos, não deviam ficar separados.
João apontou a palavra no caderno, sem perceber como o que dissera, afetou Mariana. Ela precisou ser forte para não chorar na frente do menino, que agora a olhava esperando pela explicação.
Sentindo um aperto no coração, ela tentou continuar.
-Nem sempre os... irmãos podem seguir juntos querido. As vezes... como o tracinho na palavra, a vida... nos separa.
-Eu não quero ficar longe dos meus irmãos.
O menino disse entristecido, fazendo com que Mariana o abraçasse meio de lado, para esconder a própria tristeza.
-Talvez você não precise querido. Na maioria das vezes, o ss e o rr estão juntos, não é?
João balançou a cabeça concordando e lhe deu um sorriso satisfeito. O que aqueceu o coração de Mariana e a fez se lembrar do sorriso do irmão. Matheus, mesmo passando praticamente a vida toda em um hospital, sem poder brincar com outras crianças, ou mesmo visitar um parque de diversões, ele ainda assim, encontrava motivos para sorrir.
-Já terminamos por hoje. Você fez tudo direitinho, está cada dia melhor João.
Mariana acariciou a cabeça do menino sorridente.
-A tia disse que vou tirar notas melhores na prova.
-É claro que vai. Eu estou aqui para te ajudar.
Mariana e João guardaram os materiais na mochila do menino, e ela o viu correr para dentro da casa, para começar a se preparar para ir a escola. Ela suspirou entristecida, e seus pensamentos voltaram ao irmão.
Matheus sequer pôde ir a escola. Tanta vida pela frente, tantos sonhos perdidos, e a culpa era de quem?
Talvez Paulo tivesse razão, era muito mais fácil culpar a Deus por tudo, do que assumir a própria culpa.
Mariana secou uma lágrima que desceu pelo seu rosto, ao ouvir os passos de Joana que vinha lhe chamar para o almoço.
No horário de sempre, estava sentada ao lado do menino na charrete conduzida por Pedro, que levava os dois para a cidade. O pai do menino costumava o deixava na escola, e sempre fazia algum serviço de carpintaria na cidade, no horário de aula de João, assim não precisava fazer mais que duas viagens por dia, e ainda ganhava um dinheiro extra para ajudar no sítio. Quando não tinha serviço, costumava ajudar padre Paulo na igreja. O que acontecia naquela semana onde todos da cidade estavam voltados a ajudar nos preparos para a festa do padroeiro.
-A moça vai participar da festa?
Mariana que estava novamente distraída com seus pensamentos, se assustou com a pergunta, era a primeira vez que Pedro falava diretamente com ela na charrete, normalmente ele ia calado ou falava algo com o filho durante o trajeto.
-E-Eu? Não sei. Nunca participei de uma festa religiosa.
Mariana respondeu um tanto nervosa. Pedro riu divertido.
-A festa é do padroeiro da cidade, é uma festa como qualquer outra. Tem música animada, dança, comidas típicas da região e muita, muita bebida.
Mariana acompanhou o riso do homem que agora lhe parecia mais simpático do que nos dias anteriores.
-Mas... então porque é a igreja que organiza tudo?
-Bom, na verdade é o padre Paulo que está muito envolvido dessa vez, o padre anterior não participava tanto. Mas também o homem já era velho não é? Não dava conta mesmo.
Outra risada divertida acompanhou a fala do homem, o que fez Mariana pensar, que aquela era a primeira vez de Paulo na festa. Ele devia estar ansioso.
-A festa dura uma semana, a parte da igreja mesmo, é no dia de São Tomás, ai é com o padre. Tem missa o dia todo, tem procissão do santo, e no final da festa tem uma queima de fogos que é uma belezura só, não é João?
-É sim. Eu tinha medo antes, agora não tenho mais.
Mariana sorriu para o menino ao seu lado que retribuiu.
-Bom, acho que vou precisar ver tudo isso com meus olhos não é?
Ela disse divertida.
-Vai ter a missa na praça na sexta feira, que vai abrir os festejos. O padre Anselmo já não fazia mais essa, mas padre Paulo fez questão de que a missa na praça fizesse parte do evento.
-Ele é maravilhoso mesmo?
Mariana deixou escapar em meio ao suspiro, que ela tentou disfarçar com um sorriso.
Pedro retribuiu.
-O homem é bom mesmo.
Mariana apenas acenou concordando, achou melhor parar com os elogios ao padre, antes que dissesse mais alguma bobagem.
Como passou a ser o seu costume, Pedro deixou Mariana e João na esquina da escola, e seguiu em direção a praça da cidade, onde as barracas estavam sendo finalizadas.
Mariana seguiu levando João pela mão até a porta da escola onde pararam para acompanhar a fila de crianças que entravam.
-Será que vou conseguir passar na leitura? A de hoje é muito difícil.
João a olhou apreensivo, o que fez o coração de Mariana se apertar. Ela se abaixou para ficar da altura dele e lhe sorriu.
-Você vai conseguir João. É só você se lembrar de tudo que estudamos está bem? Tenha calma e não esqueça de respirar.
Você é um menino muito inteligente querido. Não escute nada diferente disso, nunca, ok?
João se apertou a Mariana em um abraço que a pegou de surpresa porém foi rápida em retribuir.
-Eu te adoro Mariana. Espero que a vida não separe a gente.
As palavras do menino lhe atingiram como uma avalanche, e ela agradeceu aos céu por ele ter corrido para dentro da escola, não tendo visto as lágrimas que ela não conseguiu segurar, nem a dor que a invadiu de forma aterradora. Como se uma vez mais ela visse o irmão partindo, e lhe pedindo para não chorar, porque ele não gostava de vê-la chorando. Mas ali, enquanto caminhava sem rumo pela calçada ela se deixou chorar.
Ela sabia que aquela dor não ia passar, que a carregaria consigo pelo resto da vida, mas nos últimos dias ela acreditou estar superando. Porém essa aproximação com João só fazia com que ela se lembrasse mais do irmão. E aquela dor, o sentimento de culpa voltou a invadi-la com intensidade redobrada.
***
Paulo saiu da casa paroquial e se deparou com Pedro, que acabava de prender a charrete em uma árvore.
Se Pedro estava na cidade, então Mariana já havia retornado da fazenda. Ele precisava falar com ela o quanto antes. Prepará-la para um provável encontro com sua mãe, que não pareceu nada satisfeita com a explicação vaga que lhe deu sobre a moça.
Porém, ele realmente queria vê-la, queria perguntar o que foi aquele bilhete? O que ela estava pensando quando o escreveu?
Mas as questões ficariam sem resposta, pois Paulo tinha consciência de que era melhor esquecer tudo aquilo. E fingir que não aconteceu era a melhor alternativa.
-Pedro!
Paulo chamou o homem, que logo tirou o chapéu ao ver o padre se aproximar.
-Sua benção padre!
-Deus te abençoe meu filho.
Paulo disse colocando uma das mãos no ombro de Pedro.
-Pedro você trouxe a Mariana? Preciso falar com ela com certa urgência.
-Trouxe sim padre. Ela foi deixar o João na escola, mas já deve estar voltando por ai.
Paulo agradeceu com um aceno, e voltou na direção da escola. Porém quando a viu, não teve tempo de pensar a respeito, ou, de raciocinar sobre o que fazer. Ele só... correu para ela, atordoado com a possibilidade de que algo a tivesse machucado.
-Mariana! Mariana! O que... aconteceu? Por que está chorando assim?
Mariana se sentiu abraçar por Paulo que a acolhia em seu desespero.
Ela não conseguiu falar, ela não queria falar. Em seu coração ela só queria ficar ali, nos braços dele, onde se sentia segura, protegida. E por algum tempo Mariana só se deixou ficar e chorou tudo que precisava.
Paulo a amparava, percebendo que Mariana precisava colocar toda aquela dor para fora, e se era do seu amparo que ela precisava, ele não se importava que os dois estivessem abraçados no meio da calçada, as vistas de todos que passavam. Ele só pedia a Deus consolo para o coração daquela moça, tão inocente, tão frágil e tão perdida.
Paulo sentia no peito algo novo e perturbador, um desejo desenfreado de protegê-la, de cuidar dela. E lá no fundo ele soube que estava tão perdido quanto ela. Completamente perdido, como ele não se sentia a muitos anos, desde que tivera a certeza da sua vocação, desde que tomara a decisão de dedicar a sua vida única e exclusivamente a Deus. Nunca teve dúvidas de suas escolhas, nunca desejou ter tomado outro caminho. Porém estando ali, sentindo as lágrimas de Mariana molharem a sua camisa, um sentimento crescia dentro de si.
Algo que ele jamais havia experimentado.
-Calma querida, eu estou aqui. E sempre estarei.
Paulo disse a apertando mais contra si. Ela só precisava saber que ele estaria lá, sempre.João
Imagens meramente ilustrativas
Texto ainda sem correçãoMúsica tema do Capítulo
A Miragem- Marcus Viana
Capítulo lindo para vocês 😍
Espero que gostem.
Não esqueçam de votar e comentar 😉As músicas tema dos capítulos estão na playlist Tentação no Spotify 😘
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Tentação
RomanceMariana perdeu tudo que amava na vida. Ela só encontrou dor por onde passou. Mesmo sendo ainda tão jovem, ela já não tem perspectivas de futuro. Em seu íntimo ela já desistiu. Descrente de que haja um Deus no céu, pois ela não acredita que um Deus...