O olhar entristecido do jovem padre diante da janela, contemplando a imensidão do céu, chamou a atenção de Dom Rafael. Paulo estava totalmente perdido em seus pensamentos, não notou que o amigo o observava da porta do quarto onde estava hospedado.
—Saudades de casa?
Dom Rafael questionou ao perceber que Paulo não iria notá-lo se continuasse em silêncio.
Paulo lhe dedicou um leve sorriso. Gostaria mesmo de estar em casa e mais ainda de já ter resolvido tudo que precisava ser resolvido.
—É estranho me sentir assim. Durante minha trajetória como sacerdote, passei muito tempo longe de casa, longe da minha família, mas... é diferente agora, sinto um aperto no peito, um peso que não se desfaz, só aumenta.
Paulo se sentou em uma das poltronas e fez sinal para que Dom Rafael o acompanhasse.
—Bem, tenho uma notícia para você. Não sei se será boa ou ruim, mas colocará fim a tua ansiedade.
—Então diga.
—Sua audiência está marcada para amanhã, às dezesseis horas.
Paulo se levantou de súbito, animado com a notícia. Acreditou que o conselho tentaria vencê-lo pelo cansaço, como Dom Euzébio tentou fazer.
—Isso é ótimo meu amigo. Acreditei que ficaria aguardando ainda por muito tempo.
—Paulo, sente-se aqui amigo, preciso lhe dizer algo que, juro, não é minha intenção minar seu entusiasmo, porém, acredito que é meu dever como amigo.
—O que aconteceu?
Paulo voltou a se sentar e pôde notar a apreensão no olhar de Dom Rafael.
—Há um tempo atrás, um jovem padre, ainda mais jovem que você, fez um pedido de dispensa. Se dizia apaixonado e não queria mais ser padre.
O rapaz veio de Portugal, onde cumpria seu sacerdócio já há cinco anos. Ele recebeu um tempo de reflexão de um ano, e...
—Um ano?!
—Sim, um ano. E essa informação não é a mais importante. Ele cumpriu o seu tempo e... bom, ele desistiu Paulo, reconsiderou sua decisão e retornou a semana passada para sua paróquia em Lisboa.
—Deus! Ele refletiu por um ano e mudou de ideia?
Paulo questionou como se para si mesmo.
—Pode parecer loucura para você, mas acontece com muita frequência. Ainda existem aqueles que mantêm a sua decisão após o período de reflexão, recebem a dispensa e tempos depois tendem a se arrependerem. E foi justamente por isso que o conselho diocesano decidiu colocar uma idade limite para a concessão da dispensa. Aconteciam muitos casos desse tipo.
E vou lhe dizer com sinceridade, já aconteceu comigo, Paulo.
A surpresa estava estampada no rosto de Paulo, ele sequer conseguiu dizer algo. Nunca poderia imaginar que o cardeal Dom Rafael, em algum momento da vida teve dúvidas sobre seu caminho.
—Eu refleti durante dois anos, e no final, eu já havia tomado minha decisão. Eu não seria feliz fazendo qualquer outra coisa, amigo. Tive um momento de dúvida, me desviei do caminho mas, quando voltei meu olhar para o que realmente era importante para mim, não haviam mais dúvidas.
Paulo suspirou pesadamente e voltou seu olhar para o homem a sua frente.
—Eu entendo o que quer me dizer amigo. Mas eu sinto que, posso refletir por uma vida inteira, minha decisão seria a mesma. Porque na verdade não há uma dúvida em mim, só há uma decisão. Continuo amando a igreja e fiel a Deus, se eu pudesse fazer as duas coisas, eu faria sem pestanejar, porém, segundo as leis da igreja, eu sou obrigado a fazer uma escolha, e já fiz.
—Compreendo a sua determinação, só quero que entenda as diretrizes da igreja, e que não se frustre se ao final de tudo isso, eles ainda não lhe concedam a dispensa.
—Estou ciente de que, pela minha idade, como tenho menos de quarenta anos, o tribunal pode não acatar meu pedido, mesmo depois do período de reflexão, Dom Rafael. Porém, eu estarei com a minha consciência em paz, pois terei feito tudo o que podia para sair de forma honrada e digna do meu compromisso.
—Não acredita que se seu pedido for negado, é porque essa é a vontade de Deus, que você fique?
—Acredito que será a vontade da igreja, que é formada por homens que são tão falhos quanto eu, e têm seus próprios interesses, não acredito que eles falem por Deus. Deus fala por si mesmo Dom Rafael, e ele fala comigo, meu amigo. Estou aqui ignorando o pensamento constante de que eu nem deveria estar aqui. Porém, preciso desse encerramento, e ele acontecerá de uma forma ou de outra.
Dom Rafael sorriu da determinação inabalável de seu amigo. Era realmente uma lástima perderem tamanha força e determinação a serviço da igreja, e da evangelização.
Seria um trabalho árduo fazer com que o conselho entendesse isso. Que era melhor tê-lo, ainda que sem a batina, do que não tê-lo de forma alguma.
Dom Rafael pensou ainda observando o amigo, e naquele momento percebeu que havia recebido uma nova missão, tão desafiadora quanto a que recebeu anteriormente.
***
Na tarde do dia seguinte, pouco antes das dezesseis horas, Paulo estava ansioso demais para conseguir esperar no quarto. Decidiu sair da basílica e observar o movimento do lado de fora. Caminhou até a área turística, onde permaneceu observando a movimentação que era grande por ali.
Seu coração estava agitado. Não sabia ao certo o que aconteceria na audiência, mas sabia que o fato de um padre tão jovem quanto ele ter desistido da dispensa a poucos dias do seu pedido, era algo que de fato não o ajudaria muito.
—Padre Paulo! Está na hora.
Um jovem seminarista foi designado para acompanhá-lo. O que o deixou um pouco desapontado. Acreditou que Dom Rafael o acompanharia nesse momento. Haviam passado os últimos dias juntos, e Paulo aproveitou para se confessar e pedir o conselho de seu mentor e amigo, na melhor forma de proceder no dia de sua seção com o tribunal. Porém não era ele quem lhe guiava até as grandes portas de mogno fechadas diante dele. Talvez seu amigo tenha ficado chateado por perceber a convicção de sua decisão, e entendido que não haveria maneira de fazê-lo mudar de ideia, como Dom Rafael deixou claro desde o início, que era sua intenção.
O jovem a sua frente lhe deu um sorriso indulgente, e lhe estendeu a mão em direção a porta. O gesto lhe fez lembrar de quando era ele o jovem seminarista, feliz por finalmente fazer seus votos.
Paulo olhou mais uma vez para o jovem e lhe correspondeu o sorriso, agradecendo ao céu, por ele não saber os motivos que o levavam até ali, pois não gostaria de ser um mal exemplo a ser seguido por aquele jovem seminarista. Um rapaz que parecia jovem demais para já ter tomado uma decisão tão importante para sua vida. Porém os seminários estavam cheios de meninos até mais jovens que esse, todos guiados por sua vocação.
Ele esperava realmente que não se tornasse um mal exemplo, pois até mesmo o fato dele estar ali, acompanhando o jovem que o guiava pelos vários corredores da basílica do Vaticano, era o seu puro desejo de encerrar sua missão como sacerdote de forma honrada e digna. Sem que um dia ele olhasse para trás, e sentisse vergonha do seu passado.
"Que pensamentos tristes!" "Será isso que me tornarei para os jovens padres? Um mal exemplo?"
Sacudiu de leve a cabeça para afastar aqueles pensamentos que começavam a abalá-lo. Devia ser exatamente essa a intenção de quem quer que tenha escolhido aquele jovem para acompanhá-lo.
Paulo sabia que aquela seria a reunião que decidiria seu destino, se ele poderia seguir em frente com sua vida, como um homem comum, ou se seria forçado a permanecer como sacerdote, por quanto tempo o tribunal julgasse necessário para considerar que seu pedido não era baseado apenas por uma crise de fé, ou algum abalo emocional. Não podia de forma alguma demonstrar qualquer indício de dúvida, ou seu pedido seria negado sem que ele tivesse chance de argumentar.
Ele estava nervoso e ansioso quando atravessou as portas que o rapaz abriu, lhe dando passagem para uma ante sala, onde aguardaria que o chamassem.
—Me despeço do senhor, padre Paulo. Espero que sua reunião seja a contento para o senhor, se assim for a vontade de Deus.
Paulo deu um aceno em agradecimento, e viu o jovem se retirar.
Respirou e expirou profundamente para tentar se acalmar, e nesse momento a porta à sua frente se abriu, e Dom Rafael surgiu diante dele.
—Venha meu amigo. O tribunal irá ouvi-lo agora.
****
Ao entrar na imponente sala onde o tribunal diocesano se reunia, Paulo sentiu um misto de emoções. Ele avistou o Cardeal Dom Matheus, presidente do tribunal naquela manhã, sentado à frente em uma mesa circular, rodeado pelos membros do tribunal, Cardeais, Bispos e Arcebispos todos sérios e solenes, vestidos com trajes eclesiásticos.
Paulo achou curioso o fato de que conhecia todos os membros designados ao tribunal naquela tarde. Porém, o silêncio inquietante que pairava sobre a sala só aumentava a tensão que sentia em seu peito.
Dom Matheus olhou para Paulo com um olhar penetrante e inquisidor. Antes de iniciar a reunião, fez sinal para que Paulo se sentasse, no que Dom Rafael o acompanhou, sentando-se ao seu lado.
E finalmente ele se viu diante do Tribunal Diocesano.
—"Buon pomeriggio, Eccellenzas!"
(Boa tarde, Excelências!)
Paulo cumprimentou a todos, em especial Dom Matheus, um cardeal já muito idoso que o olhava da cabeceira da mesa, com o semblante cansado.
—"Buon pomeriggio, padre Paulo." Che Dio sia con te. (Que Deus esteja contigo.)
O coração de Paulo estava acelerado com batidas erráticas, a sala estava fria por conta do ar condicionado, porém, ele conseguia sentir o suor escorrer em suas costas e também molhando suas mãos.
Era uma situação desconfortável na qual ele jamais imaginou que um dia se encontraria, mas Paulo sabia que daquele momento dependia todo o seu futuro. Por isso respirou pausadamente, enquanto Dom Matheus colocava os óculos, e fazia uma leitura breve e silenciosa de um documento, que Paulo imaginou ser a sua carta de pedido de dispensa.
—Declaro aberta essa seção extraordinária.
Padre Paulo, podemos iniciar pedindo que o senhor nos conte um pouco de sua história, sua jornada de fé, e por último, os motivos que o levaram a solicitar a dispensa de seus deveres sacerdotais.
Paulo respirou fundo e começou a falar, deixando as palavras fluírem de seu coração. Ele contou sobre sua vida dedicada à igreja e principalmente aos jovens, falou sobre as alegrias e desafios que enfrentou ao longo dos oito anos de seu sacerdócio. Paulo confessou sua única e maior falta ao descumprir seu voto de castidade, e pôde ver os membros do tribunal olharem uns para os outros visivelmente surpresos nos acentos ao seu redor. Porém, não se intimidou, e continuou contando os motivos que o levaram até ali.
—Sei que devo estar decepcionando muitos aqui. Peço perdão a vocês, porque o perdão de Deus, tenho absoluta certeza de que já o recebi.
Dei bons anos da minha vida à igrejal e ao sacerdócio, porém agora estou convicto de que tenho um novo caminho a percorrer. E eu nunca fui de seguir por uma estrada que eu soubesse que não me levaria ao meu objetivo.
Não está em mim, e nunca esteve, abandonar a igreja, abandonar minha vocação, não. Fazer o trabalho de Deus é o que nasci para fazer, mas, ninguém disse que temos que ser padres para sempre. Isso não está escrito em lugar nenhum...
Alguns burburinhos foram ouvidos, após sua fala. Paulo pôde perceber, mas continuou.
—...Tomei essa decisão certo de tudo que ela implica, e estou aqui para aceitar as consequências dela. Porém, espero de todo o meu coração, que assim como eu posso ver o caminho que se abre a minha frente, os senhores também possam. Que meu trabalho sacerdotal não termina com minha dispensa, apenas seguirá um novo curso.
E que meu pedido nada tem haver com dúvida, ou qualquer tipo de conflito pessoal.
Eu não tenho dúvidas do amor que passou a habitar meu coração, e também não tenho vergonha dele. É algo puro, e verdadeiro, que simplesmente nasceu em mim, me obrigando a fazer uma escolha, e eu a fiz, totalmente consciente do que desejo.
Dom Matheus levantou-se lentamente e levou as mãos às costas, observando Paulo por um tempo que lhe pareceu interminável.
—Padre Paulo, antes de levar seu caso à votação, preciso dizer-lhe, que fiquei imensamente surpreso com seu pedido. Acredito que muitos aqui o conhecem pelo tempo que esteve aqui conosco, e também pelos seus feitos em prol da juventude. E principalmente é determinante que saiba, que sua seção é extraordinária, pura e simples pelo reconhecimento do seu trabalho nesses oito anos de seu sacerdócio. Em outras circunstâncias, não estaríamos reunidos aqui. Seu sacerdócio é muito jovem, totalmente inapto para o pedido em questão. Mas atendemos sua solicitação e daremos início a votação em alguns instantes, após uma breve deliberação. O senhor pode aguardar na ante sala, por favor. Ao final da votação iremos chamá-lo.
Paulo se levantou, fez um gesto em concordância, e se retirou da sala.
Somente quando as portas se fecharam atrás dele, foi que percebeu que estivera prendendo a respiração nos últimos minutos. Ele respirou fundo e fez uma oração silenciosa.
"Deus! Está tudo em suas mãos."Texto ainda sem revisão.
Imagens meramente ilustrativas
Música Tema do Capítulo
Last of the whiskey- James Arthur
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Tentação
RomanceMariana perdeu tudo que amava na vida. Ela só encontrou dor por onde passou. Mesmo sendo ainda tão jovem, ela já não tem perspectivas de futuro. Em seu íntimo ela já desistiu. Descrente de que haja um Deus no céu, pois ela não acredita que um Deus...