Duas semanas depois da Noite Sem Fim
Theodoro me jogou em uma cela pendurada em um poço fedido de morte. Quando me neguei mais uma vez ser o que ele quer, o mesmo cortou as cordas com as próprias garras que seguravam a cela, fazendo-a descer para baixo, para aquele buraco tenebroso, onde desde então não sai mais.
No meu terceiro dia aqui embaixo, eu já me sentia morto. Não me alimentaram e nem me deram água. Lembro de quando líquidos caíram na minha cabeça pela primeira vez: eu abri a boca para cima a caça de refrescar minha garganta desértica, mas havia vomitado no segundo seguinte, devido ao rosto amargo e a água ser mais quente.
Faziam xixi em cima de mim.
Nos cantos da cela possui minhas fezes e urina. Deito quase morto no chão enferrujado da cela mais enferrujada ainda. Todo lado era apenas escuridão. As paredes do poço são úmidas com frestas de água escorrendo por elas — eu lambo a pedra suja para tentar me hidratar. Como não me alimentam, eu ingiro musgo que nascem entre as pedras.
É uma necessidade de sobrevivência, embora não queira mais viver. Meu corpo e minha mente imploram por nutrientes, e eu desesperadamente faço o que está ao meu alcance para que a dor agonizante do meu estômago pare de latejar: conheci a fome e a sede.
— Eu sou tudo aquilo que desejo ser.
Não serei Cruel, muito menos o filho de Theodoro. Eu serei o que desejo ser: Henrique, filho de Supremas, de Lys e Fábio. Tenho um melhor amigo chamado Vicente.
Dois meses depois da Noite Sem Fim
Seguro as correntes que me prendem no poste montado no mesmo parquinho que assassinei minha mãe, de frente para o prédio em ruínas que era moradia de Lys, enquanto sou castigado por não aceitar ser o que Theodoro deseja.
Mais uma chicotada. Mais um grito. Mais uma lembrança de perder quem amo. Mais uma lágrima escorrida. Mais sangue meu derramado.
Lys.
Samantha.
Gabriela.
Vicente.
Fábio.
Sussurro sem o som da minha voz os nomes que me dão forças.
— Seu nome é Cruel, o filho de Theodoro — gritava o meu torturador antes do coro do chicote encontrar minha pele e asas, rasgando todo o tecido e espirrando sangue para os lados.
Ele repetia tanto isso que me pego repetindo mentalmente: Meu nome é... Crue... Filh..., não consigo completar a frase certa, minha teimosia de resistir persiste.
Minha cabeça doía tanto que parece explodir.
Observo ao redor e vejo meu povo chorando ao me ver sendo tão humilhado violentamente.
Repito os nomes que me dão forças.
Meu povo foram feitos de escravo, sendo levados ao Ex.Te.R.N.O para serem comercializados e vendidos como mão-de-obra, sendo os sytons caçados e mortos — os furtrucks querem colocar a minha espécie em extinção. Eu os via trabalhando para criar prédios como Theodoro quer, transformar o C.E.N.T.R.O em tudo que deseja.
Eu era chicoteado ali publicamente para que todos vissem que não existe mais salvação pra eles, e o que os restam é abaixar a cabeça para seu Magnata. O que irrita Theodoro é que não faço isso, e sou tão jovem para enfrentá-lo, ainda alimentando esperanças de um povo destinado a escravidão.
Pisquei, tão lento que parecia uma eternidade. Ao abrir meus olhos, eu estava deitado em outra cela imunda com um curandeiro da espécie tyfon cicatrizando minhas feridas para que sejam recolocadas novamente no dia seguinte.
Um ano e meio depois da Noite Sem Fim
Sozinho.
Descobri que estou sozinho há tempos atrás, e me pergunto o porquê ainda de lutar contra Theodoro.
Posso acabar com minhas torturas se eu obedecer. Todos obedecem, então por que eu não?
Enquanto limpo o esgoto com as próprias mãos dentro de um buraco escuro e fedorento, por eu ser pequeno para caber e desentupir, começo a odiar todos que um dia amei. Eles antes de morrer me dão palavras de incentivo, frases bonitas que não condiz com a realidade.
Você é tudo que deseja ser.
Eu desejo ser livre, e não sou. Frase vazia sem utilidade.
Eu odeio as minhas mães. Elas foram embora e me deixaram para sofrer sozinho. Onde eu errei? Esse sofrimento é demais para mim.
Grito alto, ecoando o som pelo buraco do bueiro. Os soldados de Theodoro, em pé na estrada de asfalto, olham para baixo e riem de minha desgraça.
Choro novamente.
— Por favor, alguém me tira daqui — imploro para o vazio. — Eu não aguento mais. Por favor, alguém...
O silêncio dizia tudo: ninguém virá. Estou sozinho.
Dois anos depois da Noite Sem Fim
— O admiro tanto, Cruel.
— Henrique — relembrei meu nome a Theodoro que me veio fazer uma visita no poço, minha estadia desde a Noite Sem Fim, batizada assim porque a mesma, mesmo tendo se passado há anos, parece durar até hoje: não faço ideia de quando ela terminará; por enquanto, não consigo dormir, preciso me manter acordado.
Quando querem falar comigo, puxam a corda até a borda, e quando terminam de fazer o que vieram fazer, abaixam a cela para o fundo do poço. Já peguei doenças horríveis que quase custaram minha vida, mas Theodoro não me deixa parti, sempre me traz de volta a uma vida de sofrimento.
— Seu nome é Cruel, meu filho. — Theodoro já repetiu tanto essa frase que ela parece a pior torturar que implementou para mim.
— Meu nome é Henrique — fixo meu olhar no dele—, e eu sou tudo aquilo que desejo ser.
Minhas palavras não saem mais com a potência de antes, se tornaram vazias e sem significado.
— É o que veremos.
Os guardas me arrastaram da cela para a claridade do dia quente. Passei tantos dias no poço que agora minha pele queima ao contato com os raios solares.
O caminho era certo: o parquinho, o único lugar que Theodoro deixou intacto, o meu lugar de tortura e humilhação.
Hoje a plateia estava organizada.
Os ministros estavam enfileirados. Só sobrevivem hoje em dia por terem implorado misericórdia a Theodoro. Como são esses ministros que sabem como manter uma cidade tecnológico com estrutura moderna funcionando, ele os poupou. Seus filhos crescem idolatrando os furtrucks, e sorte deles são serem da espécie syton, a única espécie que não pode habitar o novo mundo governado por um Magnata.
Eu poderia achar que serei chicoteado novamente, como acontece, mas hoje tudo está diferente. Estremeci com medo da nova tortura.
Me colocaram amarrado no poste, tão firme que não dá para mover nenhum músculo, até mesmo meus pés foram presos. Dois furtrucks seguraram cada lado das minhas asas e as abrem. Os ossos das envergaduras estalaram por estarem sendo puxados. No poço não dá para esticá-las.
— Não! — gritei, agoniado.
Nunca voei, mas ter minhas asas é poder me cobrir no frio com elas e sonhar em voar um dia para longe daqui. Só precisaria de uma oportunidade. Minha esperança em bateres de asas.
Theodoro me tirará tudo, até a última gota.
Theodoro se aproximou do meu rosto. Estava mais ameaçador do que já é.
— Quem é você? — perguntou ele na tonalidade alta para que a plateia o ouvisse.
Virei a cabeça de lado, e vi os ministros e os escravizados.
Os que governam ao lado de Theodoro estão bem alimentados, as roupas continuam chiques. Meu olhar se fixou nos olhos rosado da menina que há muito tempo aceitou namorar comigo: Beatriz. Ela está aprendendo a desenvolver seu poder ainda jovem, sendo uma das aprendizes do tyfon que fecha minhas cicatrizes. Nunca mais ouvi sua voz.
Os escravizados estão em pele e osso. Nenhum deles é syton, já que os furtrucks matam qualquer syton que encontra. Já ouvi falar em um festival de caçada syton, o caçador que encontrar e matar mais, ganha prêmios. Aqueles que trabalham dia e noite pertence a outras espécies, as que não aceitam abaixar a cabeça. Já ouvi dois guardas resmungando que se eu abaixar, mais abaixarão.
Eles ainda me veem como símbolo de força.
Com a garganta seca, gritei para meu povo que ainda resiste:
— Meu nome é Henrique, Supremo Syton.
Ali, joguei minha esperança de um dia voar fora, e por orgulho e ódio, não gritei de dor quando Theodoro cortou minhas asas fora em apenas um golpe com a espada que um dia pertenceu a Lys.
Jorrei sangue para todos os lados, a dor tremenda que fez meus olhos se encherem de lágrimas involuntárias, o grito instalado na garganta.
A população escravizada gritou em protesto e em resistência.
Me deixaram lá por horas até que eu não tivesse sangue para derramar. Desmaiei de fraqueza. Acordei com o tyfon ensinando Beatriz como fechar cicatrizes.
Sem minhas asas, sinto-me exposto.
Sendo curado por Beatriz, que tomou o lugar do tyfon, tento lembrar, ao menos, dos rostos daqueles que já amei, pois hoje não sei se consigo amar mais alguém, seja familiar ou não. Amor é uma ilusão que te machuca. Não sei mais como é senti outro sentimento além de dor física e mental.
Três anos depois da Noite Sem Fim
Perdi minha sanidade, meu orgulho, força e teimosia.
Eu já perdi tudo.
Quem eu sou?
Eu sou tudo aquilo que desejo ser.
Eu sou tudo aquilo que... desejo ser.
Eu sou... aquilo que de... desejo ser.
Eu sou tudo aquilo que querem que eu...
Eu sou...
Sou...
Eu...
Quem eu sou?
Eu sou tudo aquilo que querem que eu seja.
🅒 / 🅔 /🅕 /🅕
Theodoro veio para mais uma visita, ordenou que puxassem a corda da cela do poço e fez a pergunta, como toda noite, durante todos os dias, toda hora, cada minuto, sempre fez:
— Quem é você?
Respondi, tão vazio e sem nada:
— Eu sou Cruel. — O olhei nos olhos, dois animais se identificando como parte de uma matilha. — Sou o seu filho.

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Supremo Syton
FantasyHenrique tinha apenas 10 anos quando sua casa foi tomada e obrigado a ser o que ele nunca quis ser. Tornou-se o homem mais perigoso e temido pelos seus inimigos. Destinado a torturas e obediência ao seu pai, o Magnata, um sádico que o tortura se fi...