Eu estive perto de ser livre.
Talvez não feliz por completo, mas livre.
Quando se vive preso desde que o rosto de sua mãe não é nada mais do que um borrão de memória e fleches de lembranças, a felicidade é privilégio demais para um garoto que cresceu odioso. Tudo que nos resta é sonhar com a liberdade. Sentir a sensação de não pertencer a ninguém.
Penso sobre isso enquanto sou arrastado novamente para o poço escuro, úmido, fedorento e barulhento: não de vozes ou sons, e sim de todas as minhas dores que deixo aqui embaixo quando sou esquecido.
Não tenho forças para lutar. Mesmo se tivesse, nada faria para escapar. Meus amigos escaparam? Não sei. Theodoro não revelou se os mantém vivos, mas também não se vangloriou por suas mortes ou as jogou na minha cara. O incerto é uma tortura mental que desgasta o cérebro como água salgada batendo em pedra.
Abrem a cela enferrujada, o piso de madeira suja do meu sofrimento da última vez que estive aqui: cinco anos atrás. Meu vômito criou mofo, minha urina deixou manchas na madeira, meu sangue até agora estar sobre as grades e o chão. Nunca limparam essa cela do poço, faz parte da tortura.
Entro na cela e viro-me para a porta que já é fechada por cadeados. Contenho a vontade de vomitar, chorar, gritar, desmaiar, implorar. Fiquei dois dias no laboratório recebendo veneno, o que me causa náuseas. Meu estômago ronca de fome e minha pele arde tanto que lágrimas involuntárias saem de vez enquanto dos meus olhos.
— Peça perdão, Cruel — exige Theodoro. — Peça perdão e...
— Henrique — consigo dizer, a voz baixa sem força de aumentar a voz devido a ardência e sede.
— O que disse? — Theodoro franze o cenho pela surpresa de eu ter falado, já que o venho ignorando desde a nossa última conversa.
— Meu nome é Henrique — reforço. — Eu sou o Henrique.
Henrique suporta sobreviver ao poço, o Cruel é fraco demais para isso. Cruel cederia ao pai e o obedeceria como um cachorro treinado. Mas Henrique, não importa a idade, não abaixaria a cabeça.
— A porra do seu nome é Cruel. — Ele chegou mais perto, cuspindo as palavras com ódio em mim, como se Henrique já o tirasse o sono novamente. — Sabe o que acontece quando me desobedece.
Fico calado. Theodoro irrita-se mais e esmurra a grade, gritando a pergunta que me inferniza os pensamentos:
— Quem é você?
Cansado do mundo, ainda resisto com palavras:
— Eu sou tudo aquilo que desejo ser.
Theodoro não suporta minha resposta.
Ele, sem pensar duas vezes, pega um machado preso na parede do calabouço, sobe na borda do poço e corta as correntes que sustenta a cela, fazendo-me ir com tudo para baixo. Uma queda de dez metros que foi o suficiente para eu sentir meus ossos quebrarem e me entregar para a escuridão com o último pensamento do momento: fui esquecido novamente.
Rosas também possuem espinhos, dizia Samantha. Eu confiei em uma rosa, mas acabei me cortando.
Quero ver Beatriz sangrar em um campo de rosas brancas até todas estarem tingidas de vermelho. Mas, no momento, sou eu que estou sangrando sem parar na cela do poço sem conseguir me levantar até que meus ossos consigam tempo para voltarem ao lugar por si só, mas isso leva tempo, e posso apostar que estou apenas deitado por uns três dias sem conseguir me mover. Tudo dói.
Quando consigo me mover, fico deitado por desidratação e fome. Eu odeio meu instinto de sobrevivência que me faz lamber a umidade da cela a procura de saciar a sede que se torna minha pior inimiga. O barulho do meu estômago vazio me faz prestar atenção apenas nele e esquecer meus pensamentos. Me banqueteio com os musgos nas paredes rochosas, mas são tão poucos que nada adianta.
Estou morrendo. Agradeço por isso.
Quanto tempo estou no poço? Dias? Meses? Anos?
Fecho os olhos para dormir.O paraíso é rodeado por água doce.
Sonho com uma floresta verde sem destroços de um mundo arruinado pelos próprios habitantes, cheio de água a se beber e frutos para comer. No paraíso há sol para aquecer do frio úmido que sinto no poço e chuva para molhar nossa pele com água gelada nos limpando da sujeira.
Engulo a água agoniado e desesperado. Então, meu paraíso na verdade é meu inferno. Mais uma vez meus pensamentos me traem.
Abro os olhos, mas trazendo a jarra d’água para mim, bebendo cada gole. Estou na sala de recuperação. Theodoro não me deixa morrer. Ele me apresenta a ela, mas nunca permite que eu desfrute disso.
Quando Beatriz entra na sala de recuperação, agito-me enfurecido. Os guardas furtrucks me seguram com força em cima da maca e me amarram com cordas grossas.
— Vou te matar, sua filha da puta — grito raivoso, gastando minhas energias.
Beatriz senta do lado da maca e me analisa com um olhar bondoso que agora vejo os venenos. Ela sorri para mim, mostrando que venceu.
— Não, não vai — afirmou ela. — Eu realmente pensei que você poderia entregar os outros como presente a Theodoro. Ele deixou que isso fosse longe demais porque no fundo acreditava que o filho não o trairia a esse ponto. Mas, você o traiu. Ele só está cuidando de você.
— Acha que isso é cuidado?
— É o jeito dele de mostrar afeto — continuou ela. — A dor.
Então uma possível situação se forma em minha cabeça, e precisei tirá-la.
— É isso que ele te fala depois de te bater? — pergunto. — Que a dor é uma forma de mostrar amor.
As mãos de Beatriz tremem. Então ela também sofre agressões de Theodoro, mas vejo em seus olhos admiração pelo Magnata e não repulsa.
Foi dado tudo a Beatriz, tratada na alta sociedade e não em um poço. Theodoro, mesmo a agredindo, se tornou sua admiração, onde receber tapas é suportável.
— Ele me ama, Cruel — reforçou, uma certeza que apenas ela acredita. — Assim como ele também te ama.
— Sabe, pensando bem — reflito —, acho bom que acreditem que o amor vem através da dor. Porque eu vou fazê-los sofrer tanto e, no final, matá-los da forma mais cruel possível.
— Shii. — Beatriz tocou na minha pele, seus cabelos rosas já ganhando coloração por estar me curando.
Eu sentia meu corpo ganhando força, mesmo que pouca. Quando pensei que poderia ter contato com as Sombras, me injetam mais veneno. Ao final da sessão de cura, meus olhos pesam de sono.
Antes de ir embora, Beatriz agacha-se perto do meu ouvido e diz:
— Só para constar, que quem sente dor nessa situação não sou eu, e sim o seu pai. Sou eu o castigar por ter de ferir. Vê-lo sangrar é satisfatório demais, Cruel. Em breve, tomarei o lugar do seu pai e, por fim, te matar e tomar o C.E.N.T.R.O para mim.Assobio no fundo do poço, ecoando o barulho para cima. E mais uma vez eu sangro. Fui chicoteado por negar ser o que Theodoro quer e o mandar se foder.
Tão escuro. Tal calmo. Tal tenebroso.
O poço me faz lembrar do F.O.S.S.O, e como eu desejo estar lá com toda aquela energia caótica. Eu deveria temer aquilo, mas desejo tanto que já me pego falando irracionalmente:
— Quero ir pra casa.
No fundo, eu sentia as Sombras, já que faz tempo que não me dão veneno. Mas estão tão presas que não consigo contato; porém, algo se reflete em mim como uma mensagem delas dizendo que estão aqui.
Paro de assobiar e fecho meus olhos.
Ouço assobios.
O barulho não vem de cima, e sim de dentro da minha cabeça. Não são minhas Sombras. Admiro esse assobio fino formando notas calmas, uma canção desajeitada que me faz entreabrir os lábios em um sorriso pela companhia desse som.
Te achei, sussurrou aquela voz de sombras que faz meu coração disparar e minhas sombras presas baterem na cela invisível apenas para sentir mais profundo essas sombras que invadem meu corpo no consciente.
A cela começa a ser puxada para cima.
Abro meus olhos e digo o nome daquela que não recua para perigos maiores que ela:
— Ayla.Não era Ayla puxando minha cela para cima.

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Supremo Syton
FantasyHenrique tinha apenas 10 anos quando sua casa foi tomada e obrigado a ser o que ele nunca quis ser. Tornou-se o homem mais perigoso e temido pelos seus inimigos. Destinado a torturas e obediência ao seu pai, o Magnata, um sádico que o tortura se fi...