Todos se foram

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Lys colocou eu e Vicente no banco traseiro do carro enquanto tomava o banco do motorista. Fábio sentou ao lado da esposa, colocando o cinto de segurança.
      Lys acelerou o carro para as ruas movimentadas, quase atropelando espécies que querem chegar em qualquer lugar seguro. As bolas flamejantes continuavam sendo arremessadas, destruindo os prédios. Os destroços caiam nas cabeças de civis, os matando na hora.
      Vicente e eu olhamos pela janela traseira do carro e estremecemos quando vimos as espécies em pânico. Gritavam por socorro. Chamavam o nome da minha mãe como se fosse um milagre que os salvará. Era a esperança deles: Samantha. Ela sempre os protegeu e fará isso agora. E foi isso que ela foi fazer quando saiu pela sacada.
      Eu lembro de sentir seu interior querendo ficar comigo, o ódio de não poder. Ela se foi e me deixou para outros cuidarem. Essas espécies pensam que minha mãe é a mãe deles, sempre a tirando de mim, sempre reclamando e a sugando tudo de si. Senti raiva deles por chamarem minha mãe.
      Coloquei a cabeça para fora da janela e gritei:
      — Deixem minha mãe em paz!
      Samantha e Gabriela estariam aqui senão fosse por eles que sempre pedem algo.
      As espécies viraram as cabeças para o carro e correram até mim, me imploravam por salvação. Fechei a janela quando começaram a bater no vidro fortemente, querendo entrar no automóvel.
      Abracei Vicente como se agora ele fosse o meu protetor, mas sem juramento e sem formalidades. Ele se encolheu junto comigo para o vão entre o branco da frente. Vicente não está pronto para me proteger, ainda precisa de proteção. Lys e Fábio são aqueles que nos protege.
      Os dois adultos gritam para saírem do caminho. Uso minhas asas para esconder Vicente junto comigo. Mesmo não sendo um protetor, me sinto bem com ele aqui. 
      — Lys, não! — gritei em desespero quando vi a protetora da minha mãe ir para além do C.E.N.T.R.O.
      O carro percorre o deserto do Ex.Te.R.N.O, que circula o C.E.N.T.R.O, deixando para trás um lugar sendo destruído.
      — Lys, temos que levar Henrique para o Núcleo — disse Fábio.
      — Temos que levar Henrique para o C.S — insistiu Lys, acelerando mais o carro. — Preciso voltar e proteger Samantha. C.S vai saber cuidar das crianças.
      — Você tem falado com C.S?
      — Como acha que tenho informações do F.U.N.D.O? — questionou Lys. — Ele disse que a criança já sabe formar palavras.
      Fábio se espantou.
      — Que espécie? — perguntou Fábio.
      Lys nada disse além de apertar o volante até seus dedos ficarem brancos.
      — Lys, que espécie? — gritou Fábio, e me espantei com tanta grosseria. Nunca o ouvi ser tão rude. Pelo encolher de Vicente, ele também nunca ouviu o pai ser indelicado com a mãe.
      — Fábio... — a voz de Lys falhou.
      — Estão criando um monstro? — Fábio parece não acreditar.
      — Monstros não nascem, são criados. — Lys se segurava nessas palavras como um mantra para continuar o que deu início. — É uma menina. Tão pequena e inofensiva. Não é um monstro. É linda. Ela não merecia uma vida de experimentos.
      — Crianças crescem — lembrou Fábio. — Você cometeu um erro.
      Lys olhou para trás. Seus olhos pararam nos meus, firmes como uma pedra. Ela via além de mim, como se me modelasse em outro alguém.
     — Crianças são inocentes e não veem com olhos adultos — dizia Lys ainda fixada em mim, sem se preocupar com o caminho à frente, já que não existe nada para bater no carro. — Imagina crescerem juntos. Uma aliança forjada desde jovem.
      — Vão se matar — garantiu Fábio. — Vão se matar porque nasceram para caçar um ao outro. Não importa que Henrique tenha as sombras. 
      — Juntos serão a diferença.  — Lys soa como uma sonhadora. Não olhava mais para mim, e sim ao caminho que traça como uma conquista pessoal para si, atrás de um objetivo que ninguém acredita ser alcançado. — É o início de uma nova era.
      O carro ficou em silêncio. Eu queria saber de quem falavam.
      Quando pensei em perguntar, o carro colidiu com algo duro, acabando capotando no ar. Tudo ficou lento e sem som. Eu vi nitidamente todos ficarem de cabeça para baixo. Eu e Vicente indo de encontro ao teto por estarmos sem cinto.
      Tudo era devagar e tão rápido.
      No segundo seguinte, o carro bateu e se despedaçou no chão duas vezes tão rápido quando um piscar de olhos, ficando parado com as rodas girando para cima. Dentro dele, onde estamos, é sufocante e apertado.
      Eu sentia incômodos, como se existisse algo me ferindo. Sangue na minha pele deixa minhas roupas peguentas. Percebi que possuo rasgos feios que jorram meu sangue sem parar para fora do meu corpo. Achei estranho não sentir dor no momento. Meu corpo estar tão acordado que apenas quero sair desse automóvel para fora, como se eu tivesse no modo automático.
      Vou engatinhando para passar pala janela aberta sem o vidro. Os estilhaços rasgavam a palma da minha mão, e estranhei por ainda não sentir dor. Para fora, Henrique, era o que eu estava programado a fazer. Quando saí, o som voltou drasticamente. Fiz cara de dor e tampei meus ouvidos. Tudo ainda estava zonzo, se multiplicando.
      No meu primeiro passo para frente, tropecei. Minha perna possui um grande rasgo que não sustenta meu peso. Me engasgo com a fumaça negra que sai do carro e entra em meus pulmões. Caio no chão e vomito a macarronada até meu estômago estivesse vazio de novo.
      O choro de Vicente me deixou em alerta. Mesmo sem poder andar direito, me levantei e fui aos tropeços até o outro lado do carro, agora sentindo a dor tomar conta do meu corpo.
      Gritei em desespero quando vi meu melhor amigo ensanguentado ajoelhado do lado do seu pai ainda de cabeça para baixo preso no assento. O que me fez gritar foi ver uma faca fincada na cabeça de Fábio, fazendo a ferida pingar sangue no chão, sujando seu filho que lhe segura a mão e implora para o pai voltar.
      Minha atenção vai para o homem alto que coloca a mão no cabo da faca e puxa a lâmina, limpando-a com o tecido da capa preta que o cobre o corpo musculoso. Ele guarda a faca na bainha, perfeita para essa arma.
      Esse homem matou Fábio na frente de Vicente.
      Quando ele fez garras crescem nas mãos e olhava Vicente como a próxima vítima, gritei:
      — Não!
      Seus olhos gélidos fixaram-se em mim, me olhando de cima para baixo. A barba grande o tomava a maior parte do rosto. Os cabelos pretos eram raspados, deixando os dois grandes chifres de cada lado da cabeça, perto das orelhas pontudas, bem visíveis, cada ponta curvada para cima.
      Existia algo nesse homem que me deixava em alerta, como se meu poder quisesse reconhecê-lo. Tinha uma áurea poderosa, sem dúvidas.
      Ele não me é estranho. Recusei um passo quando identifiquei sua espécie: Furtruck, a espécie exilada.
       Não abaixe a cabeça, sussurrou minhas Sombras. Enfrente seus próprios perigos.
      Mesmo choramingando, fiquei com a postura ereta. Eu sustentava o olhar do furtruck. O exilado ergueu a sobrancelha, intrigado comigo. Me estudava com precisão, como se já soubesse tudo de mim.
      Ele ameaçou me atacar e rosnou. Por impulso, recuei um passo e rosnei pra ele, minhas orelhas pontudas levantadas e as asas abertas.
      Eu e ele ficamos confusos com meu comportamento. Sytons não rosnam como um animal, e o furtruck também sabe disso. Como é que eu rosnei como como um filhote em crescimento? Sou uma divisa, agora sinto isso. Não totalmente syton. Sou metade de algo, e tenho medo da conclusão que se forma.
      O que sei é que sou híbrido.
      Os olhos do exilado se levantam, fixando em outro alguém. A luz vermelha tomou minhas costas junto com o calor ameaçador da espada de Lys. Não me virei para Lys por captar mais movimentação atrás do assassino de Fábio. Eram outros de sua espécie, todos armados e prontos para duelar.
      Vicente correu até a mãe e agarrou-lhe a cintura, escondendo o rosto e desabando em lágrimas. O medo havia tomado toda a minha essência. Abracei o outro lado da cintura de Lys. Eu e Vicente entrelaçados nossas mãos, tentando nos passar conforto.
      Lys nos escondeu atrás de suas asas, nos tirando a visão dos inimigos. Era nossa protetora. O interior de Lys estava ativo, pronta para duelar. O punhal da espada encaixava bem entorno de suas mãos calejadas com as unhas pintadas de vermelho.
      — Nos dê o menino, Lys — ordenou o assassino. — Nos dê o filho de Samantha que poupamos você e seu filhote.
      — Traidor — acusou Lys em um sussurro alto, o corpo trêmulo. Ela olhou firme para o marido morto e não demonstrou nada, mas eu senti seus sentimentos interiores morrerem aos poucos. Era doloroso demais. Chorei ao sentir tanta dor por Lys. — Eu confiei em você, Sandro.
      — Acha mesmo que ia acreditar nas suas palavras de salvação? — Sandro gargalhou. — Enquanto vivia dentro das proteções, eu e meu povo ficava com as migalhas do Ex.Te.R.N.O.
      — Tínhamos planos de...
      — Seus planos era uma mentira bela de se acreditar. — Sandro apontou para mim, com um sorrido de lado malicioso. — Mas parece que o C.E.N.T.R.O não tinha machos interessantes para as fêmeas se reproduzirem, já que Samantha fodeu com...
      — Cala a boca! — gritou Lys. — Você é um traidor filho de uma puta.
      — O que deveria ser uma foda gostosa, se tornou um fardo para aqueles dois que não tiveram consciência do resultado final. — Sandro rosnou para mim, como se quisesse que eu rosnasse de novo para ele. Apenas escondi-me mais atrás de Lys. — O filhote rosna. Vejo os traços do meu povo nele. Nasceu híbrido. Nem pra fazer filho a vagabunda da Samantha serve. Se tivesse nascido apenas syton, seria menos dor de cabeça.
      — Samantha não pediu ajuda para criá-lo.
      Sandro deu um passo para frente.
      Lys ergueu a cabeça e apertou a espada.
      — Você sabe que ele trepou com Samantha imaginando você lá, Lys. Era você que ele queria. Ainda ousa querer. E quem não a quer? Você nasceu pra ser Suprema, não a Samantha.
      — Samantha é a Suprema que te faz estremecer de noite — disse Lys. — Sabe que ela é capaz de deixar a própria felicidade para bater de frente com seus inimigos. Aliás, ele não está aqui, então tudo indica que Samantha está cuidando disso.
      — Está certa como sempre, Lys. — O olhar de Sandro para Lys foi afiado. — Supremos não possuem sentimentos. Digo isso por vê com meus próprios olhos a Gabriela se explodir com granadas apenas para matar minha frota.
      Me sinto zonzo de novo, como se fosse vomitar. Meu corpo estremece e pesa. Aperto Lys fortemente, até vê crescerem garras onde devia ter unhas e perfurar a carne da mãe de Vicente. Ela morde o lábio e não grita de dor quando perfuro sua pele. Mantém a conversa com Sandro, tentando ao máximo esconder que sou metade furtruck.
      Vicente tira minhas mãos de Lys e me lança o olhar mortal. Ele odiou por eu ter machucado a sua mamãe. Choro pedindo desculpas a Lys, não me importando que Sandro veja minha fragilidade. Eu machuquei alguém.
      — Está tudo bem, querido. — Lys tentava me tranquilizar.
      — Rosnados e garras — comentou Sandro, virando-se para os furtruck atrás dele. — O menino rosna e tem garras!
      Os furtrucks comemoraram em zoação.
      — O menino tem asas e sombras — Lys falou por cima da comemoração, fazendo-os parar.
      Sandro fechou a cara.
      Ele desarmou a arma da cintura lentamente, colocando uma bala nela, destravando a trava logo em seguida. Lys não demonstrava fugir. Ela vai ficar e lutar. Esse é o homem que matou seu marido, o mesmo homem que amedronta seus filhos.
      — Ele pediu para matá-la como protesto de ter o negado. Assim como seu marido e filho. Ele abomina sua família feliz. — Sandro aprontou a arma para a cabeça de Lys. — Adeus, Lys.
      O inimigo apertou o gatilho.
      Foi desesperador ver nitidamente a bala saindo do cano da arma em direção a Lys. De imediato, escondi meu rosto em sua cintura, apertando mais a mão de Vicente.
      Ninguém caiu morto no chão.
      A bala derreteu em contato com a espada de Lys. A lâmina verticalmente ultrapassava a cabeça da mulher implacável que protege e cuida.
      — Corram! — ordenou ela para mim e Vicente antes se avançar nos inimigos, os destroçando com sua espada com apenas um golpe. Eram muitos para apenas uma, mas Lys era um exército em apenas uma mulher.
      Venceria essa luta, por vingança ou raiva. 
      Eu puxava Vicente comigo, correndo para um lugar que via ter energia no meio do deserto seco aos arredores do C.E.N.T.R.O. Era difícil de correr com a perna machucada, mas Vicente me arrastava com ele — meu braço esquerdo sobre seus ombros. Ele sangrava tanto quanto eu, mas seu olhar vazio e a respiração controlada o permitia seguir em frente.
       Deixei meu poder sentir o que Vicente sente: sofrimento.
      Ele está sofrendo pela perda do pai e a cada passo que dá para longe de sua mãe.
      — Lys vai ficar bem, Vicente. — Tento acreditar nas minhas próprias palavras.
      — Eu vou matar ele — dizia Vicente, a voz tão fria que me fez o olhar novamente, querendo saber de onde vem tanta perversidade de uma criança de um mês mais jovem que eu. — Eu vou matar ele.
      O sofrimento se foi para vingança. Meu amigo repetia essa frase como se fosse uma oração a dá-lhe forças. E, de certa forma, lhe dá mesmo, porque continuou a me carregar até chegarmos no local que descartamos o lixo do C.E.N.T.R.O.
      A grande placa sinaliza o nome do lugar:

Supremo SytonOnde histórias criam vida. Descubra agora