O beijo

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As informações que Beatriz me revelou me fez pensar sem parar.
     Esse laboratório existe antes mesmo do meu pai, então as Supremas patrocinavam os experimentos. Eu deveria não ligar, mas estou me importando mais do que desejaria. O C.E.N.T.R.O perfeito antes de Theodoro começa a revelar seus podres ocultos.
     Sentado em uma das cadeiras de uma mesa repleta de computadores, volto a olhar as criaturas que cheiram o ar, agora estando sentados de uma forma esquisita. Além das correntes nas mãos, também usam correntes entorno do pescoço.
     Os sanguinários que vejo são bichos sem consciência. Eu os vi minutos atrás tentando atacar um ao outro para comer a carne e sugar o sangue. Beatriz informou que as correntes são para eles não se matarem. Cada um deles possui correntes os suficientes para circular cada lado separadamente, o que não conseguem tocar é um no outro e nem no centro, onde está a caixa preta.
     — Aquele é o Núcleo? — pergunto a Beatriz.
     Ela assentiu com a cabeça.
     — Há uma mão robótica que desce e consegue pegar o Núcleo sem precisar entrar lá dentro. — Engoliu em seco. — Bom, quem entra, é impossível de sair vivo.
     De fato, vejo a mão ali em cima da caixa pronta para descer e agarrar o Núcleo.
     Levanto-me apressado.
     — Onde está o controle da mão?
     — Acha que eu não tentei pegar o Núcleo antes? — sibilou ela. — O único que tem a chave para ativar a garra robótica é Theodoro.
     — Filho da puta! — o xingo. — Onde ele guarda a chave?
     A tyfon fez um colar invisível com o dedo indicador.
     — É o colar dele de uma chave com três entradas — respondeu.
     Xingo de novo.
     Meu pai sempre usa aquele colar, nunca o vi sem. Ele adora mexer nele quando está entediado ou ameaçando alguém, como se pudesse usar o Núcleo e vencer qualquer desafio.
     — O que o Núcleo faz? — pergunto, querendo mais explicação.
     — Eu não sei — admitiu.
     — Beatriz! — a repreendo, querendo respostas.
     — Eu não sei — voltou a dizer, amargurada por ser repreendida. — Talvez você saiba mais do que eu.
     — Eu duvido muito.
     — Quem está atrás do Núcleo é você. — Ela se aproximou de mim, cada passo sendo cautelosa. — Aliás, você sabe de muita coisa que eu não sei. O que me esconde, Cruel?
     Abri minha boca para respondê-la, mas o som da minha voz não saiu.
     Devo contar a Beatriz que meu Espectro é Vicente? Ela se lembraria dele? Devo contar que a sanguinária nascida nesse laboratório estava a pouco tempo preste a matar? Devo contar sobre o F.U.N.D.O?
     Me encontro em uma corda bamba, em confiar ou não.
     Fitou-a intensamente, e ali eu vejo a garotinha que era antes do mundo desabar.
     Beatriz confiou em mim quando me mostrou esse laboratório. Ela me trouxe até o Núcleo e vejo-a disposta a tudo para dá um fim na vida de Theodoro, acima de tudo, de querer conversar com alguém e não querer mais ficar sozinha nessa luta sigilosa.
     Beatriz confia em mim.
     — É complicado — digo.
     — Eu te dei minha prova de confiança — a sonoridade suave de sua voz foi trocada para uma grave de medo e dúvida. Estava assim por não saber se nas próximas horas estará morta. — Agora é a sua vez de me mostrar a sua.
     Meus próximos pensamentos me fizeram sentir como um traidor.
     — Vem comigo. — Ergo a mão para ela segurar.
     Seus dedos gélidos estavam trêmulos quando tocou em minha mão quente.
     A tirei desse laboratório.
     Dirigi o carro que ela me trouxe para cá.
     A ajudei a passar pelos entulhos de um prédio destruído perto do parquinho que muitas vezes minha tortura era atração principal.
     Eu levava Beatriz para o F.U.N.D.O.

*****

     As ruas movimentadas da cidade escavada do F.U.N.D.O faziam Beatriz se aterrorizar com tantas espécies morrendo nos cantos. Havia crianças brigando por pedaços de ossos. Violência de graça por todos os lados.
     O lixão a fez vomitar no chão. O fedor a deixa zonza, mas Beatriz não recua um passo, ela prossegue. Ela sabe que a cada passo, mesmo aqui embaixo, é um passo mais à frente de Theodoro, é um passo que ela possui a certeza de não ter ninguém a vigiando ou a avaliando.
     — Moça, poderia me dá algo? — pede uma criança tão pequena que demonstra ter sete anos, mas os olhos cansados me fazem lembrar um trabalhador adulto que está exausto.
     Beatriz coloca a mão no coração quando ver o corpo ossudo do menino de pele esverdeada e cabelos de cipó quebradiços. Estava tão sujo e fedorento que parecia estar morto apodrecendo. Era da espécie Quill, a pantanosa que vive aos arredores de pântanos e se fortalecem de musgo.
     — Eu não tenho nada aqui comigo — lamentou a tyfon. — Me desculpa.
     A criança abaixou a cabeça e saiu segurando o estômago e tropeçando para não desmaiar ali mesmo.
     Antes de descermos, fiz Beatriz trocar de roupa. Ela sempre está bem arrumada, as mulheres a invejam, mas aqui embaixo o quanto mais desarrumado você é, menos chance de desconfiarem de você.
     Beatriz saiu andando sem me esperar, ela passava pelas lojas vendendo lixo como alimento e ficava pálida. Seus olhos não pararam de focar em uma pessoa em específico, sempre vagando.
     — Cruel... — a voz dela falhou. — São eles.
     — Eles quem? — pergunto.
     — Seu povo — afirmou.
     Olho ao redor para as espécies.
     — O que quer dizer?
     — São as espécies que preferiram morrer do que aceitar serem governados por Theodoro — disse ela. — Lembro de alguns indo para a execução, mas com um ataque de rebeldes, fugiram. Foram caçados no Ex.Te.R.N.O, só que nunca foram achados. — Olhou para mim. — Nunca estiveram lá em cima. Eles desceram.
     — Eu não lembro deles — admito.
     Eu estava isolado da sociedade, mas Beatriz não. Ela viu o mundo se transformar bem na frente de seus olhos. Enquanto eu estava no poço, ela estava na luz e presenciou.
     Tento lembrar dos rostos que Beatriz me diz ser alguém importante no C.E.N.T.R.O, a qual agora pede esmola na rua. Nada eu lembrava e nunca lembrarei.
     Levo Beatriz para a caverna de C.S, me certificando de que ele não está. A deixo escondida e vejo o fúria distante da sala principal. Beatriz tocava nos móveis feitos por C.S e se impressionava com tanta delicadeza.  Não posso leva-la para ver o resto do lugar, mas trazê-la até aqui é mais do que minha prova de confiança.
     Eu também queria tirá-la das ruas. As sombras me faziam sentir o sofrimento dela de não poder ajudar.
     — Beatriz, o que houve quando... — Engulo o orgulho. — O que aconteceu quando eu estava no poço?
     Ninguém nunca me contou. Theodoro me excluiu tudo. Me tirou tudo.
     — Muitos tentaram te tirar daquele poço, mas ninguém nunca conseguiu chegar até você — contou ela. — Teve espécies sytons que cortaram as próprias asas depois que cortaram a sua. Aquela frase, sobre ser o Supremo, ficou marcado no seu povo. As espécies pararam de lutar quando você abaixou a cabeça. Não tinham mais esperança de serem salvos, o Supremo deles havia morrido e deu origem a um outro alguém, o qual nenhum deles estavam dispostos a lutar até a morte. Eles fugiram. Agora eu sei que desceram.
     — Eles decidiram a miséria e até mesmo a morte do que Theodoro — surpreendo-me.
     — “Vocês serão o que eu quero que sejam” — disse Beatriz. — Era isso que Theodoro dizia para eles.
     — Qual era a resposta que ele recebia?
     Beatriz segurou minha mão e apertou, olhou para mim e sorriu de forma simpática e carinhosa.
     — “Nós seremos tudo aquilo que quisermos ser” — respondeu ela. — Colocavam várias espécies juntas em uma sala. Em todas as execuções os furtruck assassinos perguntavam o que eles são. A resposta para sair de lá, era “Sou tudo que meu Magnata quiser”, mas o coro de vozes soava com “Somos tudo aquilo que quisermos ser”. Diziam isso até o último suspiro.
     — Eles morreram por causa de uma frase abominável. — Meu coração aperta pela informação e a vontade de gritar bate na porta.
     Uma criança com uma frase foi motivo de vários adultos tomarem ela e aceitarem a morte de cabeça erguida.
     — Não importa, Cruel — disse Beatriz. — Ao menos, eles se foram sendo o que queriam ser, não o que Theodoro queria que fossem.
     Encosto as costas na parede da caverna. As ruas estavam cheia de serem que são tudo que querem ser, embora vivam na miséria, será melhor do que lá em cima sendo o que não são: submissos.
     — Não são meu povo — doeu dizer. — Henrique morreu.
     — Cruel nunca trairia o Magnata. Ele foi criado para obedecer e nunca questionar, um aliado perfeito. — Beatriz ficou de frente para mim, me transpassando confiança naquele olhar rosado que começo a gostar de olhar mais tempo. — Mas Henrique seria capaz de tudo para matar Theodoro. Henrique desceria para o F.U.N.D.O atrás de uma chance de aliados para conseguir retirar o Magnata do trono.
     — Não sabe o que está dizendo — tento soar firme, mas já não tenho mais forças de continuar me blindando. Estou exausto. — Eu a matei. Matei inúmeras espécies devido a uma frase inútil. Matei Henrique por ser um covarde que não encarou a morte.
     — Tudo bem ser o Cruel — amenizou ela. — Sempre gostei de você.
     Beatriz ultrapassava barreiras perigosas.
     A tyfon se aproximou mais de mim, até colar seu corpo com o meu. Sua mão esquerda segurava a minha, enquanto usava o polegar da mão direita para acariciar minha bochecha.
     Eu a deixei fazer isso. Eu queria isso.
     Já estou nas mãos de Beatriz, ela pode me denunciar, mas nunca pensei que confiaria em outro alguém.
     Eu confio nela.
     Receoso, fecho meus olhos e tento relaxar o corpo para aproveitar seu agrado. Respiro ofegante, como se eu estivesse no topo de uma montanha sem nada para me segurar, preste a cair a qualquer momento, mas mesmo assim continuo com os olhos fechados.
     Abra os olhos, orientou as Sombras. Não gosto deles fechados.
     A respiração de Beatriz se misturou com a minha. Eu sentia seus lábios próximos do meu. Fico no mesmo lugar esperando seu beijo.
     Não me aguentei esperar. Selo meus lábios com Beatriz, sentindo a umidade da sua boca e a maciez dos lábios. Antes de iniciarmos um beijo mais intenso, uma voz sombria fez meus ossos tremerem de tensão ao dizer poucas palavras:
     — Que lindo o casalzinho.
     Coloco Beatriz atrás de mim, servindo-me de escudo.
     O poder estava ali surgindo, a batalha silenciosa se iniciou entre mim e Ayla apenas nos entreolhando.
     — Devo matá-los agora ou esperar que se despeçam um do outro? — perguntou ela, dando um passo na frente. — Ops! Atrapalho algo?
     — Vai embora! — exijo firmemente.
     Ayla sorri cruelmente, nos mostrando suas presas mais afiadas, desejando nosso sangue descendo pela sua garganta.
     — Essa é a minha casa. — Ayla deu um passo à frente. — Vocês são os invasores.
     — Por tudo que é mais sagrado, ela é uma sanguinária — observou Beatriz. — Nunca vi um tão... tão racional.
     — Sua namorada está assustada, Cruel — divertiu-se Ayla. — Passo tanto medo assim para você, Algodão Doce?
     As bochechas de Beatriz ficaram rosados pelo desrespeito de Ayla ao referi-la pelo apelido constrangedor devido ao cabelo e os olhos rosados.
     — Pressinhas, já pedi para ir embora — também a provoco com o apelido. — Seja uma boa sanguinária e saia da minha frente.
     — Lembra que temos uma luta declarada?
     — Perfeitamente. — Dou um passo na direção dela, as garras já nas minhas mãos e os olhos fervilhando de selvageria. — Jurei fazê-la sangrar, Pressinhas.
      — Está na hora de saber o que minhas pressinhas são capazes de fazer, Traidor.
     Ali, naquele momento, eu e Ayla iniciamos nossa luta declarada, onde apenas pararemos de lutar quando um cair morto no chão.

Supremo SytonOnde histórias criam vida. Descubra agora