Traição

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— Quantas entradas existem para o F.U.N.D.O? — questionei para Vicente depois de seis minutos no elevador com aparência quebradiça se direcionando por outros lugares.
      — Algumas — admitiu ele sem revelar o número exato, ainda não me vê como alguém a confiar. — Mas a qual estamos indo agora nos levará exatamente para o C.E.N.T.R.O.
       — Era por essa entrada que entravam e vigiavam?
       — Sim.
       — Esse elevador irá cair — volto a reclamar.
       — Faça a sua aposta, Cruel — pediu Devi, se animando em ouvir minha proposta. — Eu apostei que quando o elevador cair, será com uma pessoa.
       — Não — falei, curto e seco. Apostar uma coisa dessas é íntimo demais para ter com esse grupo. Não passam de tratos.
      O sorriso largo de Devi se fechou. O chateei, mas ele já está acostumado em receber respostas assim de mim pelo tempo que passei no F.U.N.D.O armando junto a eles. Mal andei pelo Terminal, ou visitei a sala de treinamento: há soldados lá que fui ordenado a arrancar as asas.
      Olho discretamente para as asas de Vicente, mas nada vejo. Ele as coloca no corpo, em um abraço constante, tirando o volume das costas, como se não as estivessem. A capa grossa dos Espectros ajuda a disfarçar o formato do corpo. Ajuda a disfarçar todo mundo.
      Quase deixo o ar sair dos meus pulmões quando a porta do elevador se abriu. Não foi hoje que ele caiu. Saímos para caminhar pelo esgoto agora mais fedorento e evidentemente usado a cada instante.
       Estamos nos caminhos do esgoto do C.E.N.T.R.O.
      Davi abre uma escotilha e subimos por ela. O sol quente no meu rosto fora queimante demais. Depois de uma semana apenas com a luz das lâmpadas, a radiação afeta a pele. O que me tirou o choque do sol fora a entrada do F.U.N.D.O.
      Tudo ao redor é apenas ruína, os destroços de um prédio que ninguém nunca quis construir nada por cima, uma demonstração de poder de Theodoro para os escravos que conseguem enxergar essa ferida nunca fechada de uma noite sem fim.
      A entrada para o F.U.N.D.O fica onde o prédio da mãe de Vicente morava.
      — Lys o construiu junto a C.S, só que não estava pronto na noite que... — Vicente fechou os olhos e apertou os punhos, lembrando do proibido. — Enfim, não importa para você. Mas saiba que depois do que aconteceu, e que C.S me encontrou vagando pelo lixo quase morto, eu e ele terminamos a entrada. Direcionamos um caminho do elevador para esse lugar.
      — Você está certo — digo rispidamente.
      — Sobre o quê? — Despertei sua curiosidade.
      — Eu não me importo — o respondo antes de escalar os entulhos. 
      Cada passo dado era sufocante, como se eu mesmo colocasse algemas entorno de mim. Os quatro já faziam seus papéis de Espectros, tão sigilosos e presentes que por um momento, pensei que tudo fora minha imaginação a construir um escape.
      Não é um teste, repito.
      Isso é real. Uma chance de me libertar.
      As ruas asfaltadas estão movimentadas, os carros e espécies compartilhando a mesma pista, o sinal de trânsito mesmo funcionando, não serve mais de nada. O C.E.N.T.R.O tornou-se um lugar lotado. Dá pra vê no horizonte as moradias construídas de forma precária e os tijolos nas paredes: as favelas formadas.
      Estamos na parte norte do C.E.N.T.R.O, a parte mais pobre dele, onde Theodoro não se importa de dá atenção, apenas cobrar e cobrar os aluguéis. A zona sul é onde fica a burguesia, um lugar tão chique que parece outro mundo, até o ar se torna mais limpo.
      — Temos que pegar o expresso — falei para meus novos Espectros.
      — Ok — a resposta seca de Vicente indica que levou minha rispidez para assuntos pessoais.
      Pode parecer ridículo o filho do Magnata pegar o expresso, mas é o única forma de chegar na zona sul, e mais rápido. Posso ordenar que me deem um carro, mas levará quase um dia para chegar no outro lado.
      A fila da bilheteria estava cheia, todos os trabalhadores caçando uma forma mais rápido de chegar no trabalho as 6 horas da manhã — o frio matinal é gratificante, embora os raios solares já sejam queimantes. Muitos, posso apostar, serem faxineiros de rua, empregados domésticos ou qualquer outro trabalho que seja servi aos de alta classe social.  O que difere o C.E.N.T.R.O do F.U.N.D.O é a divisão, onde o rico se torna mais rico enquanto abusa dos pobres. Já no F.U.N.D.O não existe a classe maior, todos estão na mesma miséria, compartilhando o lixo até mesmo dos pobres de cima.
      Passo por todos e chego no bilheteiro. Ouço protestos, mas um rosnado meu e o olhar de selvageria, se calam e engolem em seco. Aliás, minha foto está logo no maior cartaz da Central do Expresso, as roupas ensanguentas e os Espectros atrás. Até Theodoro me usa de propaganda ao seu reinado. Aquilo é um lembrete que a cobrança virá, mas também para mostrar que sou eu aquele a protegê-los dos rebeldes que os querem mal.
       — Cinco ingressos — ordeno.
       Gosto quando se tremem e me obedecem. O meu dizer é ordem, e todos precisam cumprir. Os cinco ingressos já estavam prontos e colocados na banca. Nada falei quando apenas os peguei e segui para o expresso preste a zarpar.
      Passei pelas filas e fui cumprimentado pelos soldados furtrucks, todos querendo a minha atenção. Nada. Eu não demonstro nada. Entro no expresso, a primeira classe e me acomodo no assento macio. Ninguém ocupa o vagão mais luxuoso, todos se espremem atrás caçando vaga onde não tem. Muitas reportagens é sobre passageiros mortos que chegam no final da linha.
      O expresso é feito para ser sentado, devido a alta velocidade. Em pé é uma sorte que precisa rezar. Não me importo com quem não sairá vivo no fim da viagem, mas meus Espectros parecem incomodados em estarem sentados e todos atrás se prendendo uns nos outros em pé para sobreviverem a transição rápida.

Supremo SytonOnde histórias criam vida. Descubra agora