Briga

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Eu mesmo costurei minha carne, sem tomar nenhum analgésico, porque eu sei que esses remédios fortes dão sono. Dizem não me fazer mal, mas não confio neles. Aceitei apenas água e tempo, o qual utilizei de forma sensata para raciocinar. A febre persiste, ao menos não me deixa mais conflituoso.
      Theodoro nunca conseguiria fazer um teste assim, eu já teria sido preso quando tivesse voltado para a sala que meus Espectros morreram.
      C.S acabou de fazer uma cadeira de madeira, cortando-a com a serra e batendo com um grande martelo, colocando sua obra junto com as outras. O Fúria é um carpinteiro experiente, percebi, prático ao criar. Talvez também seja um ferreiro, e um arquiteto, devido às plantas que desenha na folha de arroz em cima da escrivaninha, e, ao mesmo tempo, um designer experiente, já que seus traços são precisos. E pelo visto, um eletricista e pedreiro, já que Davidson relatou que a caverna foi feita pelo Fúria, assim como tantas construções lá fora.
      C.S é um pouco de tudo, cada coisinha feita como um profissional experiente há anos.
      Sento no sofá que já dá para vê as molas, o olhar fixo em C.S anotando algo na sua agenda, os óculos em seu rosto para enxergar melhor. Vicente senta ao meu lado, um guarda calado cheio de coisas para falar, mas um soldado que deve obedecer às ordens de se manter quieto, a qual C.S ordenou desde que eu estava mordendo o lábio para não gritar de dor a cada vez que eu enfiava a agulha na ferida aberta até a fechar e fazer um curativo. Davidson e Devidson brigam pelo último pedaço de biscoito, não que estejam com fome, já que consumiram dois pacotes cheios. E Ayla se mantém lá em cima, sempre vigiando, sempre calada, sempre atenta, sempre pronta para atacar. 
      — Você é observador — disse C.S ainda fixo na anotação, mas as palavras direcionadas para mim. — Caça a cada segundo uma brecha para escapar, ou armas para lutar. Sempre observando.
      — Estou errado em observar? — Uma pergunta que não quero resposta. — Estou sendo observado por todos. Principalmente por ela.
      Apontei para Ayla.
      — Ayla, por favor — repreendeu C.S, como um pai brigando com seu filho. — Com ele não precisa disso.
      O ar ao redor se tornou leve. Meu instinto predador e a tensão de ser atacado se foi. Não querendo admitir, mas apenas agora consegui relaxar. Ayla consegue fazer o ar se tornar pesado, de alguma forma. Que espécie faz isso?
      — Não precisa se esconder nas sombras, Ayla — soei frio e calculista. — Sua feiura não irá me surpreender. Você é uma Dation? Talvez uma Log.
      Dation é a espécie gosmenta que solta gosma por onde anda, não possui ossos, apenas uma coluna para se manterem ereto. Não vi Ayla soltando gosma, mas se esconde tudo de si e se fecha com roupas, então talvez a gosma esteja dentro das vestimentas. Já um Log é a espécie com aparência de um rosto de um peixe baiacu, a pele acinzentada e os lábios tão grossos como se sorrisse toda hora.
      — Errou nos palpites — disse ela. — Mas você deveria usar capa toda hora também. Sua feiura assusta as pessoas.
      Ergui o olhar para os olhos vermelhos de Ayla tão lentamente que os fiz serem ameaçadores e provocantes.
      — Me acha feio?
      — Você é o homem mais feio que já vi na vida.
      Vicente segurou a risada, enquanto Davidson e Devidson deixaram a gargalhada soar no ar, batendo o punho na mesa e os pés no chão, formando gotículas de lágrimas nos olhos.
      Não sei que tipo de macho Ayla acha bonito, mas não sou o tipo feio que diz. No C.E.N.T.R.O sou conhecido como um dos homens mais bonitos, conhecido pela minha beleza e crueldade.
      — Ayla! — repreendeu C.S novamente.
      Como resposta, Ayla bufou indignada, odiando ser repreendida na frente de seus inimigos.
      — C.S é o comandante da maioria das espécies do F.U.N.D.O — relatou Vicente. — Te trouxe a ele como prova de nossa vitória.
      — Onde está as espécies? — perguntei.
      — Vou te apresentar o Terminal — disse C.S, apontando para o outro lado da caverna. — Venha comigo, Cruel. Está na hora de negociar.
      Segui C.S caverna adentro, passando pelo um corredor que nos levou para o ar livre ainda dentro da caverna. A luz clara era vindo de lâmpadas no teto, o calor considerado de raios solares. De primeira vista, vi o contraste de ambiente.
      C.S me levou para um campo verde de plantação, com espécies trabalhando e tratando das árvores cheias de frutos e da terra preta de cultivo. Vi sesmarias e degraus, as plantações de arroz, um lago com água limpa e fresca que cai entre as grandes rochas da caverna, formando uma cachoeira, onde há Profundos, a espécie peixeira que podem respirar dentro da água.
      É lindo, completamente diferente de lá de cima, onde a miséria está nas ruas imundas de uma cidade deixada ao esquecimento.
      — O Terminal fica abaixo de Orduntra — informou C.S, descendo os degraus de pedra, tudo construído de forma simples, sem nada de prédios ou cimento.
      — Pensei que só existisse o lixão e Orduntra no F.U.N.D.O.
      — E existem — concordou ele. — Para todos em cima, seja para o C.E.N.T.R.O, Ex.Te.R.N.O e F.U.N.D.O, o Terminal não existe. Apenas algumas espécies sabem sobre esse lugar.
      Passeando entre as plantações, C.S era cumprimentado por todos. O viam como algo a se admirar, agradecidos por tudo que ele faz. C.S apenas acena em respeito, como se não quisesse tanto reconhecimento.
      — O povo lá em cima sentem fome. — Não sou a melhor pessoa para falar sobre fome e solidariedade, mas não consegui deixar de questionar. — O que os separa da comida é apenas uma loja. Uma porta.
      — Não posso alimentar todos, Cruel, mesmo eu querendo. Os daqui precisam ter um prato de comida na mesa todos os dias. — C.S realmente parece querer abraçar a miséria de cima e transformar em um paraíso. — E muitos que passam fome lá, não desejam descer. E os que descem sem permissão, não respiram por muito tempo.
      — Você os mata?
      — Antes, sim. Mas agora temos uma Guardiã.
      Uma sugestão surgiu.
      — Ayla, não é? 
      — Ela precisa comer também, e os invasores são um recado para os de cima não descer, seja por o que vive aqui, ou o que tem aqui.
      Olhei ao redor.
      Um refúgio inteiro é protegido por uma garota que anda de capa.
      — O que ela é? — perguntei, mais curioso agora. — Quando diz que ela também precisa comer, então quer dizer que ela come os invasores? O que tem aqui? Que lugar de sossego é esse que esconde realmente o que é?
      C.S suspirou.
      — São perguntas demais para apenas uma caminhada — disse ele, subindo escadas do outro lado da caverna e me levando a outro ambiente. — Precisa vê os aliados dessa batalha para aceitar uma aliança com nós. 
      Outro lugar amplo da caverna mostra casas construídas, as moradias que David disse ser feitos pelo Fúria. Passamos por ela e adentramos outro lugar mais fechado, com tubos no teto para a fumaça sair — uma grande cozinha. A fogueira no chão já está assando carne e panelas no fogo queimando. O jantar é feito em apenas um lugar, onde será distribuído para as espécies. C.S me mostrou o grande refeitório, onde alguns já se alimentam.
      Nossa caminhada prosseguiu, me apresentando o Terminal, a resistência deles. Nossa última parada foi na arena de treinamento.
      — Esses, são meus soldados — apresentou-me C.S, apontando para baixo.
      Meus olhos identificaram mais fúrias, o corpo suado do treinamento pesado. Vi outros seres em treinamentos, alguns lutando contra oponentes, outros arremessando lâminas e batendo em sacos de pancadas. Poderia ter 56 deles treinando ao menos tempo, e pela caminhada tinha mais um pouco, deduzindo pelos uniformes iguais.
      Solto o ar dos pulmões quando vi um grupo de sytons, as asas à mostra e as aparências que os identificam como a mesma espécie. Nunca vi tantos reunidos depois de tanto tempo. Os rebeldes que atacam o C.E.N.T.R.O também usavam uniformes parecidos. Vieram daqui. Eu matei os sytons que treinaram aqui, que podem ser facilmente amigo de algum deles lá embaixo.
      — Como esse lugar prospere? — perguntei, querendo desviar minha atenção da espécie declarada a caçada por Theodoro, querendo os levar a extinção.
      — Eu o criei há 30 anos atrás, junto com uma mulher incrível que era Lys.
      Segurei a vontade de gritar por ouvi esse nome que aperta meu peito.
      — Foi difícil?
      — Um desafio — revelou. — A caverna era escura e perversa, o lugar que ninguém deseja entrar. Esse é um motivo de os de cima não entrarem, porque ainda acham que prevalece o sombrio.
      — Porque aqui era sombrio? — O Terminal mexe com minha curiosidade.
      — Esse lugar possui a entrada para o F.O.S.S.O.
      Me virei de imediato para C.S.
      — E criaram refúgio no quintal do F.O.S.S.O? — São loucos por viverem aqui. A ideia de viver na miséria de Orduntra me parece mais aceitável do que bater martelos dia após dia e o risco de anos depois a tampa no poço que fizeram como entrada do F.O.S.S.O seja afrouxada.
      — Vale o risco de viver aqui. — C.S endireita a postura, o olhar para seus soldados. — Valeu a pena ter feito o que fiz para encontrar minha preciosa cria.
      — Como assim?
      — Meus 300 soldados te convenceram a se juntar a nós?
      — No C.E.N.T.R.O há mais de 100 mil soldados e milhares de outras espécies que são aliados de Theodoro. Seus míseros soldados não são nada.
      C.S não pareceu ofendido, como se já soubesse que eu negaria aliança em uma causa perdida.
      — Tenho mais duas coisas a te apresentar. Um plano e alguém que vale por inúmeros soldados.
      — De quem está falando?
      — Venha, Cruel, vou te apresentar Ayla.
      C.S já voltava pelo mesmo caminho que seguiu.
      — Eu já a conheço.
      C.S abriu um sorriso de lado.
      — Não do jeito certo.

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