Maria

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Os soldados me arrastam com brutalidade pelos corredores do palacete de Theodoro até o salão magnático. Quando o portão é aberto e sou puxado para dentro, caio no chão na metade do caminho até o trono.
      Ainda no chão, vejo que todos os ministros estão reunidos. Por todos os lados, havia câmeras. Theodoro está usando energia para transmitir minha desgraça. Posso apostar que o público alvo são aqueles que vivem no gueto do C.E.N.T.R.O, que trabalham cansativas horas por dia que invés de serem chamados de trabalhadores, são escravos.
      — Levanta!
      Paraliso com a voz de Vicente. Não um pedido, uma ordem. 
      Tomo coragem para olhar pra frente, para o trono onde Theodoro senta com toda sua plenitude, mas minha atenção vai naqueles que estão ajoelhados no pé da escada da elevação do trono: Maria e C.S.
      Os dois estão pálidos e machucados. C.S possui sangue seco no corpo, a pele rasgada por garras, hematomas roxos e verdes, os olhos inchados de porrada. Maria, mesmo completamente machucada e ajoelhada, estava de cabeça erguida e sem expressar sofrimento na face. Parecia entediada com a situação, a sua forma de irritar Theodoro: não demonstrar que ele a afeta.
       Volto meu olhar para aqueles ao redor do trono. Beatriz ocupada seu lugar ao lado esquerdo, um vestido deslumbrante de cetim. Do lado direito, estava Sandro, o sorriso no rosto desastroso que me pergunto do que porquê tanta felicidade. Perto, estava Leonardo posto como um guerreiro, e bem ao lado dele, estava Vicente.
      Vicente estava arrumado como um príncipe. De longe é o rapaz mais bonito do salão, mesmo com o rosto com cortes recentes. Nada esconde suas asas, mas vejo daqui que possui rasgos terríveis que não consigo imaginar a dor que sente.
      Eu e ele trocamos olhares. O dele era ódio puro. Vejo seu maxilar tremendo de raiva, não de mim, da situação.
      — Vejo que o que filho de Sandro te chamou atenção, Cruel — disse Theodoro.
      — Filho de Sandro? — a pergunta saiu tão absurda que quando disse em voz alta, um choque de energia me consumiu e eu levantei tão pasmo que olho novamente para Vicente.
      Não.
      Vicente está sendo modelado por Sandro para ser seu filho, o mesmo garoto que o jurou morte e o odeia condicionalmente.
      Vicente retira seu olhar de mim por um momento e encara Leonardo, depois volta a me fuzilar. Um pouco da raiva dele é de mim. Não contei que Leonardo era filho de Sandro, e mesmo assim fiz os dois trabalharem juntos. Se tivesse contado, Vicente teria o matado como castigo ao seu inimigo, e então tudo cairia em ruína. Mas também não contei porque quando ele descobrisse, me odiaria e largaria de mão de me salvar. Só que eu não quero mais que ele me odeie. Quero sua amizade.
      — Solta ele — exijo. — Solta eles!
      — Vicente está livre, filho — disse Theodoro. — Diga a ele, Vicente, que está livre e sendo bem cuidado.
      — Sou grato a Sandro por me aceitar em sua família e me tratar como filho — recita Vicente como um texto decorado. — Eu e meu irmão somos devotos ao Magnata. Seremos treinados para honrar nosso pai e proteger nossa cidade.
      Vejo C.S abaixar a cabeça em lamentação. Era culpa estampada sobre seu rosto cansado. Ele sabe que Vicente está aceitando essa tortura por ele. Para que Theodoro não o mate.
      — Viu, Cruel, até Vice...
      — Eu já disse que meu nome é Henrique — aumento o tom de voz, ecoando pelo salão, ocasionando múrmuros nos ministros. — Ou você se faz de idiota ou é burro para não entender algo simples.
      — Quer que eu te trate como Henrique, então. — Theodoro levantou-se do trono, olhou para os ministros e para as câmeras, garantindo que todos estão prestando atenção. — Henrique não é meu filho. Ele é inimigo do meu povo. Meu inimigo. — Olhou para Sandro. — Vou precisar do seu novo filho emprestado.
      Com um aceno de cabeça de Sandro, os soldados pegaram Vicente pelo terno e o arrastou até ele ficar de joelhos junto com os demais. C.S xingou por terem feito isso. Até tentou levantar, mas foi socado no rosto. Era mais do que um protetor, era um pai querendo defender o filho. Já Maria, nada demonstrava. Sua calmaria me causava pânico.
      — Está vendo os círculos no chão. — Theodoro apontou para dois círculos pequenos um pouco a frente de mim. Ele estalou os dedos e cadeiras foram postas dentro. — Você vai sentar nessa cadeira. Nenhum soldado ficará perto de você. Se demonstrar alguma expressão, executo seus amigos aqui mesmo e queimo o F.U.N.D.O com todas aquelas espécies imundas. Uma respiração errada, já era. Você me entendeu?
      Não falo nada. Ele pega uma espada da bainha de um dos soldados e aponta para a cabeça de C.S, gritando:
      — Você me entendeu, porra?
      — Entendi — respondo, por fim.
      Fecho meus olhos por poucos segundos e os abro já sem demonstrar nada. Sento na cadeira e lá permaneço apenas existindo.
      — Ótimo — vangloriou-se Theodoro. — Os demais vão passar por tratamento especial. Começando por esse fúria nojento.
      Pegaram C.S e o colocaram sentado na minha frente. Em dois passos eu o alcanço, mas nada faço além de olhar para ele, piscando apenas quando necessário.
      — Aguenta — incentivou C.S. — Estamos juntos nessa.
      Conti o impulso de um espasmo pela surpresa quando um soldado chegou por trás e começou a estrangular C.S com uma corrente.
      — Não! C.S — gritou Vicente, agoniado. — Por favor, deixa ele em paz. Você prometeu não machucar ele se eu colaborasse. Solta ele! Por favor, parem.
      Um filho implora pela vida do pai enquanto eu apenas observo sem demonstrar nada.
      Quando o rosto do fúria já estava roxo e ele pronto a se entregar para morte, o torturador para de o estrangular e deixa puxar ar desesperadamente, tossindo e cuspindo saliva. Como se o pesadelo não acabasse, puxam C.S novamente para se ajeitar na cadeira e o estira a mão direita. O fúria morde os lábios para não gritar de dor enquanto o arrancam dois dedos, o mindinho, um de cada mão.
      Após torturarem C.S, trazem Vicente para a cadeira. Mutilam meu melhor amigo na minha frente, rasgam as asas dele com suas garras e o esmurram quase até a morte. Theodoro ri do espetáculo como se fosse um circo para ele. Os ministros seguram o estômago para não vomitarem devido a tanta crueldade. Não posso imaginar o que os outros que assistem por telas espalhadas da cidade estão se comportando com a situação.
      Eu? Eu vejo tudo, sinto tudo, grito alto, me desespero. Minha cabeça é uma bagunça que nunca será arrumada. Mas eu não faço, e nem demonstro nada.
      — Você é bom — elogio-me Theodoro. — Vamos então aumentar o desafio.
      Ele esperou que eu saísse da máscara fajuta que me obrigou a colocar. Viu que eu não ariscaria dá a ele o gosto da vitória. Vi C.S e Vicente serem torturados, e agora sobrou apenas uma pessoa.
      Theodoro levantou do trono, pegando Maria com facilidade com apenas uma mão, o peso para ele leve. Chutou a cadeira longe e a colocou dentro do círculo branco em pé.
      — Vá tomar no olho do seu cu, Theodoro — xingou Maria.
      Os ministros seguram a surpresa do xingamento, outros contem o riso devido a cara do Magnata.
      — Não sabe o prazer que tenho em te matar — diz ele.
      — Não sou Beatriz que aceita ser comida por qualquer coisa — despeja ela. — Então vá ter prazer com ela, seu imundo.
      Maria pisca pra mim, audaciosa. Quero agarra-lhe e chorar no seu colo enquanto me abana com seu leque, ou até mesmo tomar chá em sua estufa particular na fábrica.
      — Acha isso engraçado, Maria? — pergunta Theodoro. — Acha que só porque sua espécie me fornece veneno para fabricação de drogas que não posso machucar você, ou até mesmo te matar?
      — Se me matar, Magnata — expressou ela com cara de nojo para ele —, sua economia cai. Minha espécie é devota a mim, não a você. Mas deixei bem claro ao meu povo quem devem obedecer se algo acontecer comigo.
      Supremos são aqueles que conseguem conter o próprio poder para proteger seu povo. Lembro da conversa que tive com Ayla, sobre cada espécie ter um Supremo. Olhando para Maria, tão certa em dizer que sua espécie é devota a ela, percebo que ela é mais do que uma comerciante: Maria é a Suprema dos xag.
      Mais do que isso, minhas Sombras conseguiram sussurrar.
      Desde o início, foi ela a conter meu poder. Apenas uma Suprema pode conter poderes de outro Supremo. Mais uma prova da sua supremacia. Sem ela, não existirá veneno no mundo que contenha meu poder.
      Theodoro trinca o maxilar, pensativo. Ele começa uma batalha com ele mesmo.
      — Está tão lindo — elogiou-me Maria. — Admito que achei curioso quando se apresentou como Henrique. — Ela aguarda que eu fale algo, mas não mudo minha expressão. Conheço Theodoro o suficiente para saber que o que ele falou ainda está valendo. Maria também sabe. — Sabe, acredito que ainda não sabe quem é.
      Eu sou tudo que Theodoro não quer que eu seja, falo mentalmente.
      — Mesmo o brutamonte sendo um completo canalha, no fundo você aceitou que ele é seu pai — disse ela, mesmo sem ouvir minhas respostas.
      Cruel é uma invenção, Maria, que só machuca e destrói. Henrique, ele é...
      — Henrique é um líder que nasceu para governar um povo cheio de amor e paz — disse ela, como se lesse meus pensamentos, se bem que eu dizia que Henrique apenas nasceu para sofrer. — Mas a cidade dele foi lhe arrancada à força. Henrique, o antigo, não consegue lidar com isso. Mas o Cruel, ele sim nasceu em tempos de guerra, a maldade suficiente para tomar decisões défices sem olhar para trás. Imagina como seria se esses dois fossem um só, sem divisão. A aceitação.
      Maria...
      — Seja o que você quiser ser, mas aceite quem é, até mesmo o melhor de si, como também o pior. Ninguém é totalmente correto e bondoso. Precisa aceitar seus monstros, porque é o que você é.
      — Sabe, pensando melhor — refletiu Theodoro. — Foda-se a economia. Foda-se você, Maria.
      Maria não ligou para Theodoro, como se ele não passasse de nada. Um homem que não vale sua atenção. Em compensação, ela sorriu pra mim, olhando-me orgulhosa. Mesmo desgraçado, ela me vê como o homem mais bonito do mundo.
      — Foda-se no que ele diz, preste atenção apenas na minha voz — disse ela, meiga. — Quem é você?
      Nada.
      Eu não fiz, não demonstrei, não gritei, não esperneei, não movi nada ao ver Theodoro decapitar Maria bem na minha frente, o sangue esverdeado dela espirrar sobre meu corpo e sua cabeça rolar até meus pés.
      Não tampei os ouvidos para não ouvir seu corpo estalar ao encontro com o chão, ou o grito de C.S pela amiga que o estressava, até mesmo a agonia de Vicente ao saber que Maria era uma mãe para mim e eu vi mais uma morrer diante dos meus olhos. Até mesmo os ministros soltaram suspiros surpresos.
      Depois de tudo, eu sabia que esse poderia ser o fim do espetáculo de horror de Theodoro.
      Olho para o Magnata sem expressar nada como ele pediu, e pergunto com a voz vazia:
      — Acabou?
      Ele, respirando ofegante, cuspiu no chão e respondeu:
      — Acabou.
      Levanto da cadeira e saio sem pressa do salão magnático, os soldados sem precisar me segurarem pois eu mesmo sigo de volta para o poço, pela primeira vez desejando estar lá bem longe daqui, onde eu posso chorar alto, gritar desesperado, e ninguém irá ouvir.

Supremo SytonOnde histórias criam vida. Descubra agora