Revelação

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Eu fingia ler os artigos de regras que Beatriz me entregou.
     É para lermos e fazer um contrato mais justo para quando os fúrias assinarem, colocando termos e ordens de Theodoro. Beatriz tinha agilidade enquanto digitava as palavras no computador para serem impressas.
     Balanço a perna sem parar quanto sento no sofá de couro do escritório da tyfon. Tudo é bem organizado. As prateleiras possuem livros diversos — percebo que alguns são de medicina. Beatriz também é cientista, uma médica de alto escalão, aquela que possui poder suficiente de cicatrizar minhas feridas depois que minha carne é aberta, foi treinada desde pequena para isso.
     — Está lá fora atrás dos rebeldes parece mais interessante. — Não escondo minha insatisfação.
     — Apenas queria passar um tempo a sós com você — admitiu, largando o teclado e tomando coragem de me olhar nos olhos.
     Me acostumei com a beleza de Beatriz, uma mulher que mostra inteligência apenas com um olhar tímido e cheio de curiosidade de aprender. É uma sobrevivente desde criança.
     Os lábios finos rosados formam quase um coração. A maquiagem leve realça traços do seu rosto que a pele branca oculta. Os cabelos rosados a deixa atraente, junto com seus olhos.
     Por muito tempo, Beatriz fora a mulher mais bonita que já tinha visto na vida, isso até conhecer uma certa sanguinária. A diferença e selvageria de Ayla a torna algo extraordinário, onde apenas chamá-la de linda é pouco para realmente saber o que ela ocasiona em sua presença.
     É fácil diferenciar as duas.
     Enquanto Beatriz faz com que todos a queiram do lado, Ayla ativa o alarme de uma oponente prestes a te dominar.
     — Não sabia que gostasse tanto da minha presença — comento depois de um tempo.
     — Queria que confiasse em mim — sua voz soou tristonha e suave.
     — Não se vive hoje em dia confiando nos outros.
     — Se confiasse em mim, poderíamos ser livres — disse ela, confiante.
     Soltei um riso de leve.
     — Você trabalha diretamente para meu pai — a relembro, porque parece esquecer desse pequeno detalhe. — Qualquer vacilo meu, é algo contra mim.
     — Está errado. — Levantou-se da cadeira. — Por anos tento me manter onde estou para sempre estar a um passo à frente de Theodoro.
     Ri de novo.
     — Ninguém está a um passo à frente dele.
     — Eu estou. — Beatriz tinha confiança no dizer. — Confia em mim, por favor.
     Vendo-a ali parada na minha frente com o semblante de confiança e lamentação, me faz realmente acreditar que ela pode estar à frente de Theodoro.
     É uma sobrevivente, disse as Sombras.
     Beatriz, mesmo sendo o braço esquerdo do Magnata, é apenas uma criança sobrevivente da noite que parecia não ter fim. Foi obrigada a ver o pai morrer e orientada a nunca errar para não ter o mesmo fim. Foi posta em situações desprezíveis para apenas Theodoro firmar negócios. Nunca teve a pele cortada, mas sua tortura até hoje é mental.
     — Prova pra mim que posso confiar em você— peço-lhe, o tom verdadeiro.
     Pela primeira vez desde muito tempo, eu realmente quero confiar em alguém.
     Vicente não é mais criança, é um adulto com memórias que não consegue largar o passado. Os outros se importam uns com os outros. Ayla mesmo me mataria apenas por diversão. Beatriz viu, sabe de tudo que fiz, e mesmo assim continua a me olhar como algo bom de se ver e querer por perto. Ela sabe tudo de mim, me curou, e está aqui agora. Se ela me mostrar que posso confiar nela, é a certeza que a mesma confia em mim para ter algo contra ela.
     — Pois bem — disse ela.

*****

     Beatriz me levou ao antigo prédio de pesquisa que explodiu um ano antes da invasão do C.E.N.T.R.O. O lugar está abandonado há tempos devido à alta radiação, ninguém mora aos arredores, mas mesmo assim meu pai colocou segurança máxima no lugar — ninguém entra, ninguém sai. Ao menos, o Magnata não quer que seu povo morra por pisar no lugar errado.
     Passar pelos guardas de máscara de gás não foi um problema, já que reconheceram a tyfon ao apenas olhá-la. Colocamos os capacetes de gás e roupas de couro antirradiação ainda quando estávamos a dois quilômetros de distância.
     Já perguntei várias vezes porque me traz aqui, mas Beatriz pede que eu continue confiando nela. Não nego meu nervosismo. Tive que tomar cuidado para não rasgar o couro das luvas com minhas garras.
     Minhas Sombras haviam parado de pedir para voltar quando vimos o prédio destruído, e com uma troca repentina de humor, as Sombras se agitaram, querendo entrar no lugar.
    Beatriz me conduziu pelos entulhos da explosão. Os vidros do prédio estavam no chão fazendo barulho ao contato com minha bota preta. Até o céu noturno estava nublado nessa parte. A brisa batia na minha roupa, mas eu não sentia o frio. A roupa térmica me mantinha aquecido e protegido da radiação.
     Fico surpreso quando a tyfon aperta um botão no elevador e ele se abre em nossa frente. Antes de entrar, reparei que o elevador era diferente do qual antes havia no lugar. Uma vasta lembrança me atingiu de um passado distante, onde uma criança já esteve nesse centro de pesquisa sendo apresentado as experiencias e inovações que faziam na cidade que um dia ele governaria. Os botões eram do lado esquerdo, esse que entrei agora há muito mais botões e não tem o espelho atrás. Era uma caixa preta de metal que desceu tão tranquilamente que não senti a descida.
     O elevador foi trocado. A explosão ferrou com o de antes.
     Continue a confiar nela, eu dizia para mim mesmo.
     Beatriz me levou para um lugar circular grande cercado de metal. Havia computadores por todos os lados ligados com formulas de DNA, cálculos matemáticos. Tantos lugares vazios sem uma equipe para comandar. Quadros negros ocupavam boa parte das paredes com números e mais formulas. Nas mesas repousava pilhas de livros cientifico. Prateleiras havia frascos com algo boiando.
     — Que lugar é esse? — perguntei, girando entorno de mim mesmo para tentar ver tudo.
     — É um laboratório de experimentos — respondeu Beatriz, tirando o capacete de gás. — Pode tirar o seu. Não existe radiação em nenhum lugar. Na verdade, nunca teve.
     — Como assim? — Franzo as sobrancelhas, inspirando o ar fresco sem a toxidade pesada de uma radiação. — Eu lembro da explosão.
     Há uma vasta lembrança da criança brincando na janela de casa quando a pressão do ar se tornou densa e veio uma forte ventania da explosão do laboratório, estilhaçando os vidros de tantos outros prédios.
     Fecho meus olhos fortemente enquanto ouço vozes que me deixam nocauteado. Minha mete exigia em lembrar. 
     Filho!, gritava uma voz feminina há anos atrás depois da explosão. Era o desespero de uma mãe atrás de seu filho. A mulher abraçou forte seu filho e o escondeu com seu corpo enquanto ele chorava de dor de cabeça.
     O que você fez, Lys?, gritava a mulher. O que você fez?
     Somos mais monstros do que eles, a voz firme e amarga da mãe de Vicente soou em minha cabeça. Eu só dei uma chance para eles.
     Você não tinha esse direito, acusou a mulher de poder espinhoso.
     Ela é só uma criança, lamentou Lys. Assim como Henrique também é um. Diga-me, Samantha, seu filho tem culpa de ser um monstro quando crescer?
     — Cruel, tudo bem? — a voz de Beatriz me tirou das lembranças.
     Minha testa suava e meu coração batia rápido. Eu queria chorar por ter ouvido tão nítido as vozes das mulheres que foram um dia tudo para mim.
     Henrique.
     Henrique deu seu suspiro de vida em mim, mostrando que o garoto sozinho e medroso sem seus familiares ainda existe no Cruel. Henrique quer gritar e chorar. Henrique se encolhe quando o Cruel engoliu o choro entalado na garganta e fitou firme Beatriz. Não irei chorar na frente dela.
     — O que aconteceu aqui? — pergunto.
     Beatriz percebeu que quero falar sobre tudo, menos se eu estou bem.
     — Teve uma explosão, mas não radioativa — explicou ela. — Foi uma coisa que se sacrificou.
     — Coisa? — Fico confuso. — O que quer dizer com sacrificar?
     — Venha ver com os próprios olhos — chamou ela.
     Beatriz andou para a parte funda da caverna de metal. Havia uma grande parede de vidro ocupando desde o chão até o topo. Meus dedos gelaram em contato com a parede. A blindagem era impressionante. Nada parecia capaz de quebrar esse vidro, nem mesmo explosões.
     Eu via o que tinha dentro.
     Parecia uma arena circular de treinamento. Estava escura, mas a fraca luz que ilumina justamente um ponto central deixava ver o lugar ao todo. No centro, onde a luz batia, havia um suporte o qual estava uma caixa preta cheia de cadeados.
      Essa caixa fez os pelos da minha nuca se arrepiarem. Passei a mão no vidro e alisei, fiz isso até perceber que eu rosnava e arranhava o vidro.
     Quero destruir essa caixa. As Sombras odiaram a caixa, mas ao mesmo tempo queria estar do outro lado do vidro. 
     — A coisa é essa caixa? — pergunto, olhando para Beatriz.
     Seus olhos rosados perderam vida olhando para trás de mim. Engoliu em seco antes de apontar e dizer:
     — Foi uma daquelas coisas que se explodiu.
     Virei o rosto lentamente para o vidro novamente.
     Entreabri os lábios, segurando um grito de terror.
     Cara a cara comigo estava uma criatura terrível e apavorante. A pele tão escura que me fez lembrar da noite sem fim, os pesadelos que tive quando criança. Parecia que eu tinha voltado ao poço escuro e os sentimentos de nunca mais ver a luz na vida. Essa escuridão era as piores escuridões que já passei.
     Só de olhar, deixei uma lágrima de sofrimento cair, não uma cristalina salgada — saiu de meus olhos uma lágrima de sangue. O poder da criatura era tão grande que ultrapassava a espessura do vidro e atingia a vítima do outro lado.
     Os olhos estavam leitosos. Ele é cego. Não me ver, apenas está lá existindo enquanto mexe a cabeça careca sigilosamente. Um predador preste a dá o bote.
     O corpo nu mostrava as marcas horríveis de tortura. Seu pênis fora cortado fora, deixando apenas a metade à mostra. Tampei a boca com a mão, porque era apavorante aquelas marcas em seu corpo.
     — Ele é um...
     — Sanguinário — completo o dizer de Beatriz.
     Não havia dúvida de qual espécie pertencia a criatura.
     Outra criatura se aproximou do vidro, as correntes mexendo no chão. Essa era menor o qual estou frente a frente, mas também tinha o corpo mutilado e um dos olhos leitosos; porém, o olho direito tinha um brilho vermelho. Não podia enxergar com esse olho, mas estava lá o poder de sangue no olhar morto de uma criatura viva. Na cabeça tinha fios vermelhos em partes aleatórias. Estava nua, revelando ser uma fêmea.
     — São os últimos da espécie — disse Beatriz. — Cientistas de séculos montaram esse laboratório para estudá-los. Há anotações e vídeos que mostra essa prisão cheia de sanguinários, mas os experimentos foram os matando.
     — Criavam sanguinários aqui. — Minha voz soa chocada. 
     — Esses dois são os últimos da espécie. Estão vivos há mais de 100 anos — voltou a explicar. — Passaram por mutações, mas o corpo suportou tudo. Tentaram fazer eles se cruzarem entre si para ter mais da espécie.
     — Se cruzarem? — Minha cabeça parecia explodir.
     Enquanto Beatriz falava, eu fitava a fêmea, seus olhos vermelhos vivos que cada vez mais em minha cabeça se tornava dois e mais brilhosos, um poder oculto jovem de querer fazer o mundo sangrar.
     — Nasceu mais um sanguinário — disse Beatriz. — Há vídeo do nascimento. Foi uma fêmea. Quando bebê, tinha um nível surpreendente de poder. Matou seus cuidadores apenas chorando. Os fez sangrar até a morte. Era uma assassina surpreendentemente poderosa devido as mutações nos pais que herdou na prole.
     — Onde está a fêmea? — perguntei, já sabendo onde ela está.
     — Eram três adultos, mais a criança. — Beatriz suspirou apavorada das próprias palavras. — O terceiro adulto que se suicidou quando estava do lado de fora para exames e explodiu o prédio, usou seus poderes até que não suportasse mais nada. Quando a poeira abaixou, esses dois adultos estavam tão insanos que preferiram comer os corpos nos destroços do que fugir. Foram presos pela Suprema Samantha. — Beatriz tocou no meu ombro, querendo me passar conforto. — A criança tinha cinco anos e nunca mais foi vista. Acreditamos que ela morreu, mas o corpo nunca foi encontrado.
     Eu vi no sanguinário macho as sardas apagadas no seu rosto em forma de estrelas deformadas. Eu voltei meu olhar na fêmea e seus olhos vermelho-sangue.
     Ela nunca disse que veio do F.O.S.SO, disse as Sombras. Só que preferia viver lá do que na claridade do C.E.N.T.R.O.
     Não tinha dúvidas.
     Ali, no outro lado do vidro, estavam os pais de Ayla.



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