Cicatrizes

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Minhas costas doíam tanto que a ardência era uma tortura sem fim.
      Mesmo com dor, eu só conseguia chamar por Pressinhas e tentar me desvencilhar de Vicente e Davi e ir atrás dela, mas eu não tinha forças.
       O tempo e espaço se tornou confuso para mim quando o pico de dor chegou no máximo. Só lembro de ser colocado no sofá velho de C.S e o vê-lo correr a procura de medicamentos. Gritei agoniado quando um pano molhado encostou minhas feridas abertas, embora o fúria tentasse ser delicado.
      Tempos depois, não sei ao certo, Beatriz chegou para fazer seu trabalho costumeiro em mim. A sessão de cura dela fora menos tempo dessa vez, já que, mesmo com todo estrago, não fiquei horas lá sendo chicoteado até desmaiar. Não era magia com luz brilhante, simplesmente é minha pele criando tecido e fechando as feridas, e eu gritava porque isso dói pra caralho.
      Quando Beatriz terminou, sua pele branca estava encharcada de suor e o rosto cansado. Usar seus dons a deixa exausta. Meu agradecimento a ela veio por parte de um simples apertar de mão com a sua.
      Meus olhos queimavam.
      A cada piscada parecia eternas, já que cada vez que pisco, o cenário muda. Antes eu estava no sofá, e no segundo seguinte estou no quarto. Pisco mais uma vez e todos se foram da minha visão. Novamente pisco, e Vicente está sentado em uma cadeira ao lado da minha cama, seus olhos estavam vermelhos de choro e com olheiras. Tento o alcançar com a mão, e então, pisco de novo; quando abro os olhos, Vicente não está mais lá.
       Meu corpo a cada piscada ficava mais pesado e sonolento.
      Finalmente meu corpo desperta de vez.
      Fechar os cortes não significa que a dor passa, pelo contrário, sinto como se recebesse cada chicotada novamente, a diferença é que não está marcada na minha pele.
      Levantar da cama fora um desafio que conquistei com sufoco. Cambaleei, mas a parede fora meu suporte para me deixar em pé. A tontura toma meu cérebro e brinca de gira gira com ele. Minha sede foi facilmente saciada com o copo d’água na mesinha ao lado da cama. Desejei Maria aqui agora me abanando a pele, mas esperá-la por minutos não a fez vir até mim.
      Saio do quarto e vou segurando pelas paredes dos corredores da caverna até a sala principal. O que vejo me assusta.
      Davi estava sentado com C.S no sofá velho, lhe acariciando as costas em conforto. C.S chorava com as palmas das mãos sobre o rosto, escondendo suas lágrimas que desliza entre suas mãos e cai como goteira no chão coberto de tapete. Nunca o vi tão fragilizado.
      Vicente estava sentado na mesa com a mesma cara tristonha de quando vi na cadeira do meu quarto. Esse sofrimento eu só havia visto uma vez: no dia que Lys deu seu último suspiro de vida. Devi estava tão deprimido que nunca pensei sentir falta de seu sorriso brincalhão dado a qualquer um de graça.
      — Cadê Ayla? — perguntei adentrando no local.
      Olho para o ninho dela em cima, com a esperança boba de vê-la lá me fuzilando com seus olhos de predador, mas seu lugar estava vazio e frio, sem a dona para ocupar o espaço.
      — Faz três dias que me faço a mesma pergunta — respondeu C.S, a voz embaçada de sofrimento. — Theodoro não está no C.E.N.T.R.O, ele juntou uma equipe de caça especializada e foi atrás da minha filha no Ex.Te.R.N.O.
      — C.S colocou fúrias para tentar encontrar Ayla, mas nem ela e os caçadores de Theodoro foram mais vistos — completou Davi pelo protetor que volta a chorar. — Estamos cegos. Não sabemos se Ayla está viva ou... Não quero nem imaginar.
      — Estamos falando de Ayla — disse Devi, tentando se empolgar. — Ela voltará com a cabeça de Theodoro em uma bandeja.
      — Devi está certo — dou ênfase. — Ayla voltará.
      Meu coração me traia. Estava tão dolorido, não pelas minhas dores, por não saber nada de Ayla.
      Eu queria sentar no outro lado de C.S e lhe confortar também, mas nada faço além de permanecer em pé no mesmo lugar.
      “Porque irmãos, mesmo que se odeiem, não abandona um ao outro”, lembro dela dizer.
      Quando aceitei fazer parte dessa família, Ayla também me tomou para si e sua proteção. Agora eu entendo quando o corpo de todos do refeitório relaxaram quando ela entrou. Porque Ayla é alguém que não recua de perigos, mesmo que seja sentenciar a própria morte.
      Sua crueldade cuida dos seus protegidos.
      E no meio de tantos pensamentos, apenas um era o central de todos: ela veio por mim. Os gêmeos e Vicente me tiraram de lá.
      — Eu falei para não subir — disse Vicente amargurado, erguendo a cabeça para me fitar. — Mas você preferiu ouvir Beatriz do que nós.
      — Era preciso ter ido, Vicente — defendo a tyfon.
       Vicente levanta da cadeira tão depressa que a derruba para trás, um abalo que fez C.S olhar seu filho de asas.
      — Não, não era preciso! — gritou Vicente. — Poderíamos atacar o laboratório naquele dia, mesmo não estando nos planos. Dava pra fazer isso e você sabe, mas não queria perder as oportunidades de foder mais com Beatriz e decidiu ouvir ela.
      Suas palavras foram equivalentes a dez chicotadas em minhas costas, só que a dor não foi na pele, e sim, na alma.
      — Pare de falar besteira! — o repreendo. — Você não viveu 14 anos com Theodoro para saber que não subir seria jogar tudo que criamos no lixo.
      — Dava pra ter atacado o laboratório — insistiu novamente. — Mas mesmo depois de tudo que criamos juntos, decidiu ouvir Beatriz do que nós.
      — Beatriz, entre todos, é a pessoa que mais me entende e me compreende — defendo-a novamente. — Somos amigos.
      — Nós somos os seus amigos! — bravejou ele, furioso e decepcionado comigo. — Nós somos os seus amigos antes mesmo de aceitar fazer parte de nossa família. Mas mesmo depois de entrar nessa, continua afastado.
      — Minha única amiga é Beatriz — reforço. — Ela esteve naquele inferno comigo. Beatriz curou minhas cicatrizes durante todo o tempo que você não estava lá.
      Não o deixarei que fale mal da garota que me abraçou mesmo sabendo que Cruel estava presente.
      — Não! — gritou Vicente, aproximando de mim a cada palavra que pronuncia a seguir. — O que ela fez todos esses anos foi esconder suas cicatrizes.
      — Pare de falar merda, Vicente — o critico novamente, já me estressando com ele.
      — Diga-me, Henrique, o que ela fez todos esses anos, te sarou?
      A pergunta do syton se pareia no ar, e o nome Henrique ecoa na minha cabeça. Essa pergunta não é para o Cruel, porque se fosse, a resposta viria de imediato: sim, sarou, foi suficiente para levantar da cama e bater em mais inocentes que não pagam o aluguel. Mas qual é a resposta de Henrique?
      Beatriz me deixa vivo para mais — mais dor. Cura minha pele, mas deixa o estrago da dor física e mental para eu mesmo lidar. Não posso cobrar uma cura dela além do que seus dons podem oferecer, mas... Minha dor interna amenizou quando eu estava no refeitório, e até mesmo quando ouvi dizerem que me tirariam daquele parquinho, ou quando acordei e vi Vicente lá do meu lado, sabendo que ele me protegeria se eu piscasse mais uma vez e acordasse no dia seguinte, ou quando Maria me abana com seu leque e me faz companhia no chá.
      Henrique é complexo demais, possui sentimentos demais.
      Nada respondo, então Vicente continua:
      — Você está tão machucado que não sabe administrar sua dor, a embaralha e um pingo de compaixão que alguém faz por você, já toma como um salvador. — Uma lágrima escorre de seu rosto. — Onde Beatriz estava durante todos os 14 anos que viveram com Theodoro? — Não respondo. — Ela estava do lado dele com a roupa limpa sem nenhum sangue a manchando, enquanto via você sofrer. Ela fechava suas cicatrizes por querer, ou era obrigada por Theodoro?
      — Para de falar — peço, os olhos já se enchendo de lágrimas com tanta dor que suas palavras me trazem.
      — Seus verdadeiros amigos não escondem a suas cicatrizes, eles a abraçam até que sare, mesmo que essa dor dure por anos. Amigos de verdade estão dispostos a sofrer na pele a dor que sofreria só para te poupar de mais sofrimento. Amigos de verdade estão...
      — Dispostos a serem caçados para que te tirem da tortura que estava passando — completo por ele, o que mesmo depois de tudo que disse, não jogaria essa verdade na minha cara. — Amigos de verdade se fortalecem durante anos e volta por você.
      — Não é porque não está mais marcado na pele que algo está curado — refletiu ele, mais calmo. — Posso aceitar que diga que Beatriz seja a sua amiga, já que cresceram juntos e compartilham segredos, mas o que não vou aceitar é que diga que ela te curou.
      Vicente se direcionou para a saída, mas parou na porta.
      Antes de sair, completou:
      — Quando Ayla voltar, pergunte você mesmo se amigos estão dispostos a serem caçados. Mas saiba que amigos estão sim dispostos a se fortalecer por anos e voltar pelo seu melhor amigo, embora ele mesmo esteja até hoje se recusando. Lutarei por ele, porque amigos de verdade fazem isso


Supremo SytonOnde histórias criam vida. Descubra agora