F.U.N.D.O

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Levou um dia para que chegássemos até a entrada secreta para o F.U.N.D.O, o lugar desconhecido por todos, menos para aqueles que estão acostumados a entrar e sair de lá de baixo: a casa deles.
      Tive a certeza que se eu entrar no F.U.N.D.O, só saio com uma aliança feita com eles ou meu corpo será esquecido em algum lugar. Me mostraram demais para que no final me deixem sair andando como se nunca tivéssemos nos conhecido.
      Durante todo o tempo, Davidson e Devidson não pararam de falar, um alfinetando o outro como irmãos briguentos, mas na hora de dormir se acomodavam juntos e se abraçavam para quererem o calor um do outro. Talis era o garoto protegido por Vicente, sempre conversando com ele e tentando amenizar a situação. Eu senti inveja da relação tão simples e carinhosa deles, uma falta constante, como se algum dia distante do passado eu já tivesse sido amado e capaz de amar.
      O que me deixa intrigado é Ayla. Ela nos acompanhou com outro carro, sozinha. Nas paradas de descanso permanecia com o capuz, mesmo que o sol fosse sufocante e ela ficasse constantemente ofegante e limpando o suor da pele que não consigo vê pelas vestimentas. O que sei dela é o nome e a cor dos olhos. Nada mais.
      Até olhar para Ayla me deixa em alerta. Ela desperta minhas Sombras e me faz querer abraçar minha escuridão.
      Vicente garantiu que eu e Ayla não nos matássemos no meio do caminho. Um xingando o outro. Um discordando do outro. Um reclamando do outro. Um inimigo do outro.
      — Me ajuda aqui — pediu Vicente depois de limpar a areia e tirar os galhos ao redor de uma tampa de metal de bueiro.
      Me coloquei ao outro lado dele, pegando em um suspensório de mão e fiz força ao mesmo tempo que Vicente, levantando a tampa devagar.
      — Isso fede. — Fiz uma careta pelo mau odor que sai de dentro do buraco redondo aberto.
      — Se quiser, posso te matar agora para que não sinta mais nada — comentou Ayla naturalmente e em deboche. — Já que o famoso e implacável Cruel não suporta cheiros fortes.
      — Ayla, não me tente — a repreendi seriamente, mostrando que se ela quer entrar em uma briga, estou disposto a enfrentá-la até mesmo com a perna ainda ferida e enrolada com panos.
      — Então pare de fazer cara de nojo e entre no buraco. — A raiva dela agora é eu odiar o cheiro da entrada da sua casa, sentiu-se ofendida. Mesmo os demais não demonstrando ou falando como Ayla, vejo que se sentem ofendidos por eu odiar entrar nesse lugar tenebroso.
      Me levantei e cheguei perto de Ayla. Vicente já estava em pé, mas cheguei a tempo de quase misturar minha respiração com a de Ayla, querendo vê além de seus olhos vermelhos, mas nada vejo. Então a fito intensamente, uma batalha silenciosa que nenhum dos dois abre mão da vitória.
      — Se me ordenar novamente a fazer algo, arranco sua língua fora e deixo morrer engasgada com o próprio sangue. — Deixo bem claro que estou os seguindo por vontade própria, não por eu ser um prisioneiro, muito menos dela.
      Prefiro lutar até à morte com Ayla do que ela ser minha predadora. Ayla não é nada além de uma garota que gosta de me tentar. Tenho certeza que a espécie dela deve ser a mais insignificante que existe, aquelas tão nojentas que possui vergonha de mostrar o rosto gosmento e tenebroso.
      Ayla levou as mãos para o colar dela de pedra de Ortrix, ameaçando arrancá-lo do pescoço. Ela está tão perto que posso arranca-lhe a capa, finalmente vê seu rosto.
      Veja-a, Carcereiro, desejou as Sombras se despertando com a presença de Ayla, querendo sair e a consumir para uma escuridão sem si.
      Vicente puxou Ayla para trás de si e ficou de costas para mim, os dois se xingaram e quase entraram em socos. Ayla não simpatiza nem com os próprios aliados.
       — Estamos aqui para firmar aliança, e não criar desavenças — reforçou Vicente para o grupo, mais para mim e Ayla. — Temos que ir para o F.U.N.D.O, e só há esse jeito de chagar lá sem sermos descobertos.
      Para não me estressar mais, entro no buraco escuro e fedorento. Era como um escorregador, mas com o chão molhado e o ar horrível de respirar. O escorregador nos levou para corredores mais fedorentos ainda. É o esgoto da cidade abandonada, percebi. Ainda está funcionando, sinalizando que algum grupo se instalou e usa o encanamento para jogar seus esgotos aqui.
      Sigo Vicente e os demais pelos corredores largos do esgoto. Abrimos mais uma tampa, que nos levou mais para baixo, para outros corredores fedorentos e imundos. O grupo ligou lanternas para enxergarem o caminho e abrirem mais uma tampa, cada vez mais para baixo. Quando pensei que teria que abrir outra, vi o poço quadrado em uma queda profunda para baixo.
      O ar estava sufocante de respirar. Essa parte fora construída as pressas, percebi, mas quem o construiu deixou tubos de ventilação para que aqui embaixo o oxigênio, mesmo escasso, dê para sobreviver.
      Davidson apertou em um botão, fazendo a plataforma tremer e uma caixa de metal enferrujada descer até ficar no nosso alcance.
      — Nem fodendo que vou entrar nisso aí — protestei.
      Tudo está enferrujado e caindo aos pedaços, se entrarmos é capaz de morremos caso a caixa se desmorone. O grupo sabe disso, mas parecem acostumados em colocar a vida em risco com esse elevador.
      — Posso assassinar ele agora? — perguntou Ayla.
      — Não começa! — repreendeu Vicente, fazendo-a ergue as mãos ao ar em redenção. — Parece que vai cair, mas é bem resistente. Acredite.
      — Se eu cair, mato você ainda no ar — o deixei informado antes de entrar.
      —  Se você cair, ficará para a história — comentou Talis em divertimento. — Muitos já apostaram muita grana nesse elevador para quando ele cair. Alguns até já morreram sem nunca ter ganhado a aposta.
      — Ótimo! — Bufei ao ironizar: — Isso me deixou muito mais tranquilo.
      O piso rangeu com todos dentro, mas me mantive calado. Estávamos amassando um ao outro, o espaço não era largo para que 6 pessoas o ocupassem, e temo que o peso também não seja favorável, mas eles não colocariam a própria vida em jogo se não confiasse no elevador com aparência tão envelhecida que parece cair a qualquer segundo.
      O elevador começou a descer, rangendo constantemente, o som tenebroso dos parafusos funcionando e caindo, tremendo a caixa mais do que um terremoto.
      A mão de Talis alcançou a minha, um ato gentil de um garoto amedrontado. Soltei minha mão da dele, me espremendo entre todos para trocar de lugar. Vi Devidson segurar a mão do menino, lhe passando proteção. Não sou aquele que Talis deve caçar apoio. Prefiro seu ódio, como Ayla me odeia, do que ser algo para ele e o decepcionar, como vejo em Vicente, a tortura constante que enfrento.
      A viagem durou por 10 minutos, tão longos que pareceu horas. A porta se abriu para um corredor com luzes piscando no teto, a falta de energia a cada segundo. Acompanhei o grupo para a escada vertical que nos leva para cima, depois da tampa que Davidson abriu no teto. Agora começou nossa escalada para a parte superior. Era um labirinto para mim, tantas portas e buracos, um caminho traçado e feito no mapa que vai apitando no aparelho no braço de Davidson, nosso guia.
      Davidson parou a mão na última tampa como escotilha de tanque. Olhou para mim e anunciou:
      — Bem-vindo ao F.U.N.D.O, Cruel.
      Ele abriu a escotilha e subiu. O acompanhei logo em seguida.
      O que eu vi foram montanhas de lixo maiores do que os prédios do C.E.N.T.R.O, tantas tralhas que me perco no mundo devastado de restos. Vi quando a tampa no teto alto do F.U.N.D.O se abriu e despejou o lixo dos de cima para baixo, se fechando para que ninguém suba.
      Lá em cima, dá pra saber quando é dia ou noite, já aqui tudo é confuso. Há teto de ferro na parte superior, com inúmeras lâmpadas ligadas que é o mais próximo que as espécies nascidas aqui pode chamar de sol. Há tubos grandes com tampas que são a escotilha de lixo do CDL, além de outros tubos com hélices girando para jogar oxigênio aqui em baixo.
      Acompanhei o grupo pelo lixão, me deparando com a miséria que relatam ter. Muitas espécies estão apenas em carne e osso, catavam lixo para comerem os restos de migalhas de grãos de feijão misturados com bichos e as imundices do lixo. Crianças trabalham com sacos pendurados nas costas atrás de ferros, as caras cansadas de uma infância que nunca tiveram.
      Eu via corpos jogados no chão sendo comidos pelas espécies carniceiras, como os Wen, a espécie que come tudo que encontram pela frente. Os olhos não tinham íris e nenhuma humanidade, apenas a necessidade de comer. O corpo corcunda, as mãos cheias de garras e os dentes tão afiados como de uma peixe piranha. 
      O que me deixou estupefato foi que ninguém liga por passar ao lado dos Wen, como se fosse normal vê-los se alimentar, nem mesmo o grupo que acompanho liga pela barbárie. Talis é o único que demonstra lamentar, mas seu olhar era acostumado ao ver.
      Normal.
      Tudo isso é normal, mas não deveria ser. A miséria e a precariedade são normais, tanto sofrimento e ruína.
      — Que lugar é esse? — perguntei a qualquer um quando vi que seguíamos para tumultuados de moradias feitas de pano, casas de madeira uma em cima da outra. É uma favela criada perto de um lixão.
      — Aquela é Orduntra, A Cidade Escavada Da Ruína — disse Vicente. — A única cidade que existe no F.U.N.D.O.
      O F.U.N.D.O é composto por lixo e uma cidade.
      Segui o grupo até as espécies moradoras de Orduntra. Elas brigavam no meio da rua e ninguém apartava, um matando o outro. Ladrões tentam roubar mercadorias de vendedores e alguns acabam sendo mortos por tal coisa. As crianças estão jogadas no canto com as mãos para cima a pedido de migalhas.
      Não há regras.
      Não há controle.
      Não há empatia.
      O F.U.N.D.O é literalmente o fundo do poço.
      Vicente parou em frente a um estabelecimento, um mercado de tralhas e comida que parece ser a mais comestível desde que meus olhos captaram. As espécies parecem não ligar para nós, ou se minha perna ainda sangra e deixo passos de sangue como uma trilha.
      Ninguém sabe que viemos de cima. Aliás, não tem como saber. Se todos soubessem que há um jeito de subir sem serem mortos, os apostadores do elevador ganhariam as fortunas por acertar que iria cair.
      A porta dupla de trás nos levou ao um frigorífico, e a porta no final dele nos levou para caminhos de escadas que descem em giratória. Adentramos mais a caverna com pouca iluminação até a sala no final do degrau. Pensei em questionar mais vezes, mas nada adiantaria. Não tenho o que dizer agora, apenas os seguir.
      É caótico a sala improvisada dentro de uma caverna, mas não posso negar o grande espaço que se fosse reformado, daria um belo salão de festa, embora a umidade e o eco seja algo a se acostumar com o tempo.
      — C.S — chamou Vicente, a voz firme e a sensibilidade ao chamar aquele que senta de costas para nós em uma escrivaninha. — Voltamos.
      O homem levantou a cabeça apressado com o chamado de Vicente, virando-se em seguida, os olhos verdes com pupilas verticais, como de lagartos, esbanjando a surpresa e preocupação.
      O homem analisou o grupo, como se quisesse saber que realmente estão vivos. Direcionou um olhar de reprovação para Talis, ocasionando um abaixar de cabeça do menino. Não preciso saber da história para ter certeza que a criança não deveria ter subido. A teimosia o levou a seguir seus amigos em uma perigosa aventura.
      — C.S... — começou Talis. — Eu...
      — Entre, já! — ordenou C.S, o timbre forte com uma potência de voz grossa. Poderia ser um comandante ordenando seus soldados, nenhum deles desobedeceria com tanta frieza e superioridade. — Sua mãe te aguarda no andar de cima. Não faz ideia do que a fez passar.
      Talis nada disse quando seguiu mais para dentro da caverna, subindo escadas feitas de rocha, um lugar ainda desconhecido por mim.
      Quando vi o menino sumir, pego C.S batendo o dedo indicador na bengala que pôs a frente do seu corpo ainda sentado na cadeira, enquanto seus olhos de lagartos passeiam por mim, de cima para baixo, tão estudiosos que me coloquei ereto, a postura de um soldado.
      Sua pele esverdeada escurece mais quando C.S se apoiou na bengala e ficou em pé. A careca havia cicatrizes que desciam até o rosto, seguindo caminhos até os braços com pelos e mais para baixo, onde um golpe foi tão fatal que a cicatriz que ficou foi a consequência dele não ter uma perna, a esquerda. Tive que levantar a cabeça para olhá-lo nos olhos, já que o homem musculoso possui mais que dois metros de altura.
      Um Fúria.
      C.S é um Fúria Superior, um dos machos alfas da matilha, um líder.
      — Henri... — Com um olhar rápido para Vicente, C.S calou-se em segundos, mas logo em seguida prosseguiu sem mudar nada, nem um piscar de olhos, como se nunca tivesse errado. — É uma honra recebê-lo aqui, Cruel.
      — Não digo que estou honrado de estar aqui, mas é o que temos para hoje.
      C.S riu em escárnio.
      — Ao menos eu sei que não exageraram quando ouvi boatos de você.
      Ergui a cabeça, perguntando em superioridade:
      — Que sou temido?
      — Que é um filho da puta.
      Ayla riu da resposta de C.S, a única que se divertiu com o ácido em forma de palavras direcionadas para mim. Os demais ficaram atentos, como se eu e C.S fôssemos entrar em socos, e, de certa forma, é bom estarem preparados para proteger o Fúria, porque estou a um fio de arrebentá-lo.
      — Estarei em posição — informou Ayla a C.S antes de ir para a parede da caverna e escalar os encanamentos feitos embaixo, até um ponto escondido entre dois canos, parecido com um ninho.
      Ayla sentou no ninho, deixando a escuridão sem a luz atingir o local a levar para o mundo invisível, apenas os olhos eram vistos. Tudo neles gritavam morte, uma fúria de um predador preste a dá o bote em alguém embaixo. Em mim.
      Por um momento, me senti ameaçado, com medo e, ao mesmo tempo, excitado. Não ansiando por sexo, e sim por uma caçada, ter as Sombras comigo, rosnar e me deixar levar pelo primitivo existente na minha essência. 
      O que Ayla tem que mexe comigo?
      — Sente-se, Cruel — pediu C.S, apontando para um sofá velho no centro da sala improvisada com poltronas, cadeiras e uma mesa de madeira com as pernas tortas.
       Cada pisar no chão era um gruindo segurado por mim. Minha perna ferida inchou com o tempo, provavelmente infeccionada agora. Cutículas de suor já me preenche a testa e as costas, o olhar cansado e a pele pálida também mostra isso aos demais. Mesmo assim, não deixei ninguém me ajudar. Eu consigo fazer tudo sozinho, como Theodoro me ensinou.
      Sentei no sofá, respirando aliviado por estar sentado. Estirei a perna esquerda por não suportar a dor de a ter dobrada. O pano que enrola o ferimento já está encharcado com meu sangue.
      C.S pegou um banquinho de madeira e colocou na minha frente. Abriu uma caixa de papelão e tirou pinças, agulhas, soros, linhas e tesouras, colocando em cima da mesinha com rodinhas que trouxe consigo.
      — Agh! — grui de dor quando trouxe minha perna para mim, sabendo que C.S quer dá um de médico.
      — Preciso costurar a ferida aberta — disse ele, já com a tesoura em mãos para cortar o pano ensanguentado.
      — Não preciso da sua ajuda. — Deixo claro na voz e no olhar mortal que não quero nada que venha dele, muito menos a compaixão.
      É um teste, minha mente diz pra mim. É mais uma merda de teste que Theodoro está fazendo comigo. Sou estúpido! É claro que tudo isso deve ser mais um teste.
      Olho para os lados, procurando meus Espectros me vigiando desde que saí do Ex.Te.R.N.O até aqui, os torturadores que me aguardam atrás de alguma porta. O que faço é traição ao meu pai, e devo ser castigo por tal coisa.
      — O que você está procurando? — perguntou Davidson, franzindo o cenho ao olhar para os lugares que olho. — Eoem, garoto doído.
      — É um teste, não é? — Foi o que consegui dizer, a mente cansada e a dor na perna aumentando. — Isso é mais um cenário que Theodoro criou para provar minha lealdade. Sei disso. Vamos, já estou pronto para a tortura da vez.
      Falhei no teste. Fui desleal.
      Lembro de anos atrás, quando Henrique havia ido embora, mas ainda tentava retornar a ser quem era. Theodoro o fez acreditar que as mulheres que o tinha criado estavam do outro lado da porta, onde os rebeldes o resgataram e o levariam para um lugar seguro. Era real, tudo. Os sytons preocupados e lutando para ter o pequeno Supremo. No final, o que tinha no outro lado da porta era uma sala de tortura, onde Henrique levou choque até se mijar nas calças e se desmanchar em fezes, até que Cruel o tomasse o corpo novamente.
      Me trairia em um piscar de olhos, filho?, havia perguntado Theodoro quando chorei em seus pés lhe implorando para parar. Nunca respondi sua pergunta.
      Dois anos depois, mais rebeldes vieram para me resgatar. Os matei e levei suas cabeças para Theodoro. Vi o olhar de orgulho do meu pai e o sorriso de lado, me admirando. Nunca revelou se eram verdadeiras rebeldes ou mais atores contratados por ele. Não importa. Não devo confiar em ninguém.
      Nunca mais caí em testes, mas este foi elaborado demais. Theodoro criou um com tantos cenários, tantos personagens. Como se ele soubesse de cada detalhe de uma vida não real, de um mundo esquecido ao lixo.
      — Está com febre — disse C.S, sem nem ao menos encostar na minha pele quente. Suo como se estivesse em um deserto abaixo do sol, a aparência adoecida de alguém preste a se entregar a escuridão. — Não é um teste, Cruel. É uma negociação.
      Não é um teste, Carcereiro, sussurrou minhas Sombras, risonhas. É seu fardo.
      — Calem a boca! — gritei, deixando todos na caverna atentos.
      É seu fardo de nunca saber em quem confiar.
      — Calem a porra da boca! — Deixo minhas garras arranharem o ar, como se as Sombras fossem pessoas a se machucar. C.S teve que se esquivar do golpe.
      Tudo estava errado.
      A dor aumentava, não a dá perna. Não me importei de eu mesmo rasgar o pano ensanguentado e enfiar minhas garras dentro da ferida aberta, indo tão fundo até jorrar mais sangue. A dor física ameniza a dor mental. As Sombras gargalham do meu sofrimento, mas sinto-as encolhidas, como se a dor também fosse sentidas por elas.
      Quando tempo passei sem tomar meus remédios? As Sombras ficam livres a cada segundo, fazendo minha pele queimar com o nevoeiro negro, como fumaça.
      Era uma tortura sem fim viver dentro dos meus pensamentos. Onde um segundo estou seguindo um caminho que pode me livrar de um torturador, e o outro cai a ficha que tudo passa de um teste.
      Paro ofegante, olhando nos olhos de C.S, sua expressão atenta de um homem querendo compreender o que acontece. Mesmo parecendo bruto, C.S me olhava de forma meiga, não para um homem cruel, para uma criança perdida.
      As Sombras ali me tomaram, me fazendo desfrutar de um poder adormecido. O sentir. Senti a áurea protetora de C.S, era tão grande que acolhia. Guardava um interior sensível por meio de uma aparência e atitudes de brutalidade.
     Recuei de perto, o medo de me apegar a esse sentimento de acolhimento que me faz lembrar de um passado não real, um garoto morto que ressuscita e me transforma em um homem culpado e cheio de dor.
      — Me mata, por favor — pedi-lhe, quase em um sussurro, já me sentenciado a morte se Theodoro me ouvir pedir por favor.
      Se é um teste, prefiro a morte. Não suporto mais ter que ser levado para uma sala escura e não saber quando vou sair de lá, entrar em um poço e esquecer que existe um sol no céu.
      Apenas quero algo impossível: que alguém parasse com essa tortura sem fim, tanto a da minha carne quanto de meus pensamentos.
      — Vou cuidar de você — prometeu C.S, destemido e confiante, como se eu fosse um passarinho com a asa ferida, não um tigre que mata com as próprias garras. E foi C.S que deu um passo à frente, sabendo exatamente quem eu sou. Sem medo. Sem repulsa. Sem ódio. — Vou te acolher, criança.

Supremo SytonOnde histórias criam vida. Descubra agora