Aquele em que Shuhua ajuda Minju.

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Descobri que o velhinho Freud estava mesmo certo, e que nossos pais possuem uma influência do caralho na gente.

Não sei se foi ele mesmo que comentou uma parada dessas, mas quase certeza que sim. Fiquei com essa coisa grudada na cabeça enquanto a neném dormia ao meu lado na cama, como se o mundo não tivesse meio que desabado em sua cabeça. Eu achei que ela estava sendo exagerada quando disse que o pai é complicado, mas percebi que estava é pegando leve.

Não me senti culpada por ter falado com ele daquela forma, aquele cara bem que mereceu. Eu não disse nada para a neném porquê não queria vê-la triste, mas deu pra perceber que o cara não tava nem aí para a filha. Ele não deu a mínima, desde o momento em que Shuhua pisou em casa. Tudo o que queria era falar sobre notas e essas coisas.

Dá para entender porque a mulher abandonou ele, é claro que dá!

Só que nada, nem toda a infelicidade do mundo, explica ela ter abandonado a própria filha com esse babaca intolerante. Nada. E eu sei que, se não fosse por Lottie, Shuhua provavelmente não teria ninguém nessa vida.

Essas coisas ficaram rondando a minha cabeça durante a noite toda depois que despertei do meu cochilo. E toda vez que eu tentava virar para o lado e dormir de novo, não conseguia. Me senti angustiada por tudo o que a minha namorada teve que passar durante esse tempo todo. Depois, senti muita raiva. Como que um cara faz uma coisa dessas com uma criança e quer ser chamado de pai?

Eu decidi, então, no meio da madrugada, que não importava o que acontecesse, eu não poderia simplesmente ir embora e deixar Shuhua sozinha nessa casa. E eu sabia que não dava pra ficar. Pelo menos não depois de tudo o que falei, né?!

Deslizei o dedo devagar por suas costas desnudas, ouvindo um suspiro baixinho ecoar de sua boca. Shuhua remexeu, mas não mudou de posição. Soltei uma risada baixa, agarrando o edredom e a cobrindo.

Soltei um suspiro ao sair da cama e me vesti com o pijama, olhando para a neném de bruços com o rosto enfiando no travesseiro. Sorri, balançando a cabeça negativamente.

Abri a porta do quarto, olhando de um lado para o outro antes de sair no corredor e me perder na escuridão da madrugada. Desci as escadas na ponta dos pés, preocupada em acordar alguém. Meu intuito era chegar a cozinha, beber um pouco d'água, voltar pro quarto e só sair de lá quando estiver indo embora, só que o destino nunca pareceu disposto a colaborar comigo, de qualquer maneira.

- Eu tinha medo disso, sabe?

Estanquei no meio da sala ao escutar a voz rouca, seu sotaque sobressaindo no silêncio da noite. Quando me virei para olhá-lo, notei o copo de whiskey em sua mão. O pai de Shuhua ergueu o rosto, me dando a visão de seu semblante tranquilo.

Tranquilo demais para quem havia falado uma merda daquelas pra própria filha.

- O que o senhor disse? - pisquei lentamente, tentando entendê-lo.

- Eu tinha medo, porque sei que pessoas como você sofrem demais.

Enchi a bochecha de ar, soltando lentamente.

- Pessoas como eu, o senhor diz? - soltei uma risada baixa, sem humor. Ele me olhou com os olhos tortos, provavelmente por culpa da bebida. Sacudiu a cabeça que sim, ingerindo o líquido de seu copo. - O que o senhor quis dizer com isso?

Pierre soltou um suspiro consternado.

- Pessoas que gostam de pessoas do mesmo sexo. - respondeu com cuidado, me olhando nos olhos. Ainda sentado, ele se remexeu sobre a poltrona.

- Acontece um pouco disso, sim. Acontece muito, na verdade. Mas é ainda mais doloroso quando os ataques vêm de casa.

Ele soltou um riso descrente, provavelmente percebendo o que eu estava fazendo. Ergui a sobrancelha.

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