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CAPÍTULO IV

    Estava escuro quando Wuxian abriu os olhos. Ficou quieto por um momento, captando os sons à sua volta. Toda a energia havia sido drenada de seu corpo.
Arquejante, como se tivesse corrido muitas léguas, respirou fundo e tentou normalizar a respiração. Agora, não eram os aromas do opulento quarto renascentista que lhe assaltavam as narinas: a fragrância de óleo turco de rosas, o perfume de frutas suculentas e o indefinível cheiro da paixão.

Não, agora tudo o que podia sentir era a brisa marinha, misturada ao cheiro de mofo que parecia ter se instalado por toda a parte desde que interrompera o aquecimento do castelo.

    Ele pressionou a palma da mão sobre a testa. Tinha conseguido. Estava de volta ao Castelo de Wei. Obrigou-se a se endireitar e olhou para o próprio corpo. Usava o mesmo hanfu de antes, com a frente rasgada e a bainha levantada até os joelhos. Teria sonhado?, indagou-se, examinando sua triste indumentária. Talvez, sua imaginação tivesse criado uma fantasia para poupá-lo do horror de ser violado pelo detestável He Peng .Não; ponderou. As reminiscências da noite anterior mostravam-se nítidas demais para serem uma reles fantasia.
Ele era capaz de recordar tudo nos mínimos detalhes. Cores, cheiros, texturas. Tudo era real demais para ser apenas um sonho.

    Wuxian olhou a seu redor. Seus olhos  cintilaram na penumbra, à espreita. Um raio de luar incidiu sobre ele, derramando um filete de luz prateada sobre uma de suas mãos. Foi aí que percebeu uma marca escura riscando a linha do dorso. Tocou-a de leve, já intuindo que se tratava do sangue que Lan Zhan derramara na noite de núpcias. De algum modo, havia carregado aquela marca através dos séculos. Ao relembrar o sacrifício a que ele voluntariamente se submetera, crispou a mão ao dar-se conta da terrível escolha que tivera de fazer, foi sacudido por soluços. Sua visão ficou turvada de lágrimas.

    Compreendia perfeitamente que jamais poderia ter permanecido naquela outra realidade. Precisava voltar para salvar Nie Guangyao e a criança. Por outro lado, como viver com o remorso de saber que, se houvesse permanecido no mundo de Lan Zhan, poderia ter tido uma chance de ajudá-lo a escapar da traição e da morte?
Ele fizera sua escolha. Duas vidas contra uma. A vida de Lan Zhan não lhe dizia respeito. Já a vida de Yao e de seu filho eram de sua inteira responsabilidade. Secou as lágrimas com um gesto brusco. Ainda tinha muito a fazer. E, embora sua vida agora lhe parecesse um deserto de desolação, não lhe era dado capitular.

    Repentinamente, como se uma vaga impressão se cristalizasse, ele passou pela porta envidraçada e olhou para o céu noturno, onde a lua cheia vagava por entre nuvens esgarçadas. Torceu as mãos, incrédulo. Como a lua podia estar cheia, se duas noites atrás ainda era lua nova? Tinha certeza disso, pois estivera na praia, vendo o barco de Pai Bao partir com seus passageiros, rumo à costa inglesa.

Ele havia se ausentado apenas por uma noite... ou não? Seu cérebro fervilhou, à procura de uma resposta plausível para aquele impasse.
Wuxian voltou ao gabinete. Quando seu olhar pousou no retrato de Yiling Laozu, deixou escapar um grito de puro horror. O quadro parecia ter sido atacado por um maníaco. Os golpes e talhos haviam tornado a pintura irreconhecível. A faca que ele usara para se defender de He Peng achava-se cravada na garganta de Wei Ying.

Wuxian sentiu um suor gelado banhar-lhe a fronte. Pois era exatamente aquilo que He Peng teria lhe feito, não quisesse o destino que ele fosse transportado através dos séculos. E era exatamente isso que He Peng lhe faria se conseguisse apanhá-lo.
    Ainda que o retrato mutilado lhe provocasse calafrios, ainda que o ímpeto de fugir dele fosse quase incontrolável, Wuxian sabia o que tinha a fazer. Aproximou-se do quadro e inspecionou-o. Por milagre, o mecanismo por trás da tela continuava intacto.

Cuidadosamente, começou a apalpá-lo. O quadro se moveu. A porta secreta surgiu.
    Wuxian deu um suspiro de alívio.

    Mal havia entrado no quarto quando o impacto da colisão com Guangyao quase o derrubou ao chão.

As duas vidas de Wei WuxianOnde histórias criam vida. Descubra agora