Ceres - Você sabe quem é o Inimigo?

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    No aterrorizante breu do crepúsculo, Amélia tentava correr o mais rápido que conseguia sobre a grama enlamaçada pela agressiva tempestade que caia. Ela desviava-se com velocidade dos robustos troncos negros, mas ainda assim, ouvia de longe os esganiçados relinchados dos cavalos da patrulha que a perseguia. Um movimento em falso e ela seria pega. Precisava pensar com urgência como sairia daquela persecução, porém sua turva visão tornava o seu desafio ainda mais árduo para enxergar e evitar os obstáculos da floresta. A cada segundo eles estavam mais perto de seu alcance e num momento de pânico, Amélia viu seu pé afundando num buraco, levando-a diretamente para o barro.

Uma ardência escalou de seu pé até sua perna e ela gemeu ao sentir seu tornozelo torcido. Levantou os tecidos do vestido e viu o rastro de sangue espalhado em sua perna.

Amélia, arfando, deixou o olhar correr a sua volta vendo as silhuetas escuras e embaçadas das árvores. Sentia na pele os furiosos pingos gélidos da chuva de outono despencarem do céu, e atingi-la com violência, como flechas de gelo. A ventania chicoteava seu corpo que sofria com o calor exaustivo da corrida.

Ela tentava respirar, trêmula, o ar congelante entrava por sua boca ressecada e descia cortando a garganta. Estirada ao chão, um rápido pensamento correu por sua cabeça: seria fácil desistir, somente esperar todas as consequências que não pareciam ser claras em sua mente, como muitas outras coisas.

Se desistisse, ela teria que se submeter outra vez a vida que desejava deixar para trás.

Ouviu os homens pararem bruscamente a menos de uma légua dela, e arquejou. Com forças que ela duvidava que existissem dentro de si, foi capaz de se esconder atrás de uma árvore antes de ser avistada por eles. Precisava estarrecer-se, entretanto aquela parecia uma tarefa impossível pelo modo que tremia – tanto de frio como de medo.

Amélia inclinou-se lentamente para ver os seus perseguidores: eram cinco homens montados em corcéis, no meio da trilha barrenta, caçando a fugitiva.

Um olhou em sua direção e ela tornou a colar as costas sobre o tronco e prensou os olhos. Tentava controlar a respiração, esperando que o cavaleiro não tivesse a visto.

A chuva radicalmente mudou tornando-se uma fina garoa que não demoraria a parar.

"Comandante, a perdemos de vista." Um cavaleiro dirigiu suas palavras em meio ao barulho para o líder da caçada.

Amélia espiou outra vez. Viu um dos cavaleiros aproximando-se de onde ela se escondia, seu coração acelerou, sentiu os seus pés frágeis pisarem sobre pequenos pedregulhos que cercavam a árvore. Ela engoliu seco e tomou coragem para abaixar-se e pegá-los.

– Não ouse falar isso, do contrário, perderemos a cabeça se o rei descobrir, se espalhem! Continuem procurando! – A voz de Sor Kaufmann se sobressaiu com austeridade.

– Sor Kaufmann, há algo atrás...

Amélia ouviu finos galhos estalando e subitamente algo saltou das árvores e correu pela floresta como um raio. Ela apanhou um susto que foi logo distraído ao perceber que os cavaleiros atiçados pela presa, como cães de caça, dispararam todos na direção do vulto não identificado.

Apressadamente Amélia deslizou pelo terreno desnivelado tentando não escorregar no barro enquanto se afastava da trilha. Pensou primeiramente que aquilo foi um golpe de sorte. Ela os despistaria por um longo tempo, mas por outro lado, sua consciência alertou-a dos possíveis perigos que agora estaria submetida adentrando a verdadeira Floresta Negra.

Seu pé latejava de dor. Sentia a queimação por toda a sola, amaldiçoou as sapatilhas que usava, mas sabia que era somente sua culpa por não ter pensado num calçado mais apropriado para uma fuga. Notou em seguida que uma delas tinha simplesmente desaparecido.

Amélia cambaleava pela floresta mancando e em alerta. Não conseguia evitar olhar para trás todos os minutos até ser atingida no rosto por um fino galho seco que provocou outro corte na pele. A adrenalina que movia seu corpo imediatamente sumiu e Amélia sentiu como se todos seus membros se tornassem uma velha pedra pesada, difícil de carregar.

Seu peito subia e descia sem parar, o cansaço dominou seu corpo nos segundos seguintes fazendo-a apoiar-se na primeira árvore que apareceu ao seu lado. Ela tentou retomar todo o ar que faltava em seu interior. Arrancou com o pé nu a sapatilha imunda de lama seca que restava, pensando que não haveria sentindo continuar apenas com uma metade do par.

Assim a ferida deixada pelo galho de árvore ardeu e em reação, ela encostou o dedo sobre o pequeno corte acima da maçã do rosto. Algo molhado roçou na sua pele ressecada e com os rastros da luz do luar ela pôde ver o sangue quente escorregar ao longo de seu dedo indicador. Contudo apenas uma gota, diferente das outras, se recusou a fazer o mesmo percurso. Amélia observou a tal gota insurgente se jogar na imensidão e cair sobre seu pulso esquerdo, em cima de sua marca de nascença. A metade de um sol e da lua, quase um desenho permanente de tão bem desenhado.

Ela engoliu seco ao sentir a vertigem sondando-a no silêncio da noite.

Amélia tentou concentrar-se. Precisava agir se quisesse sobreviver. Abriu então os olhos e deixou-os correr ao redor, entre às escuras sombras das árvores, uma cor pareceu ressaltar seus olhos.

Ela mancou apoiando-se nos troncos molhados e se deparou com uma clareira onde uma grande rocha repousava. A luz da lua e das estrelas eram intensas naquele espaço onde as árvores rareiavam fazendo a superfície cinza do rochedo tornar-se quase um prateado. Havia somente ela naquele centro, nem um outro se atreveria romper com tal perfeita simetria. Pequenos seres brilhosos vagavam num voo baixo e folgado pelo ar e tudo parecia belo e sereno, Amélia pensou que eram até mesmo mágico!

Apesar da fragilidade dos pés, ela mancou até o centro, seus pés gritavam de dor e num certo momento ela quase caiu.

– Preciso continuar – murmurou para si mesma.

Deu passos fortes e decididos até seu pé torcer e quase provocar outro tombo, mas ela estava decidida a não desistir. Quando alcançou a rocha e tocou sua solidez, ela não evitou sentir orgulho de si própria. Olhou maravilhada os vagalumes que rodavam a sua volta. Percebeu que a partir da rocha, dois caminhos se revelavam entre as árvores, um para a esquerda e outro para a direita, qual deles deveria seguir?

A relva verde iluminada pela lua cheia se espalhava até as árvores que contornavam o círculo, molhadas pela recente chuva que caíra mais cedo. Como cresciam ao natural, estavam pontiagudas, entretanto quem pisasse nelas podia sentir as plantas dos pés afundarem na maciez suave de sua textura, o que machucava menos seus pés sensíveis.

Antes que decidisse por qual caminho seguiria, ouviu um farfalhar vindo da mata. Seus olhos semicerrados percorreram o circulo caindo sobre os arbustos. Eles eram baixos e escuros, de espinhos pontiagudos que traziam um tom melancólico à floresta, as raízes velhas deixavam o contraste da aparência murcha de suas folhas escuras e secas. Novamente outro ruído tomou sua atenção, como se houvesse alguém ou alguma coisa correndo atrás da mata. Amélia sentiu um tremor percorrer da ponta do seu dedo até sua cabeça. Sabia que uma vez que deixasse o medo dominá-la naquele lugar, ela estaria completamente vulnerável.

– Quem está aí?! – Gritou, sem poder esconder o apavoro na voz. – Ordeno que apareça! – Um frêmito soprou da direção oposta. – Apareça!

Entretanto, a tal coisa apenas a observava. Havia alguém ali e ela não poderia negar, estava sendo observada. Trêmula, decidiu que deveria partir. Não se acalmaria sabendo que algo a observaria durante à noite. Andou de costas para o caminho da direita, com os olhos cravados no cenário aterrorizante que a cercava. Amélia tinha uma terrível sensação que aquele espaço se estreitava à medida em que ela se afastava, até mesmo os vagalumes tinham se tornado luzes assombrosas.

Seus pés não aguentavam nem mais um passo, no entanto, ela se esforçou pedindo que eles a ajudassem pela última vez. Deu algumas pisadas para longe, distanciando-se da rocha e seguindo para a direita. Sentia a aproximação de algo. O pânico se espalhou e ela tentou correr.

Sentia-se vigiada de todas as direções, aquela mata escura pareceu-lhe um circo de horrores com todos os tipos de monstros escondidos entre a escuridão das árvores. Atemorizada, ela esforçou-se para seguir o caminho que parecia se afunilar. Seus pés doíam e ardiam, como se implorassem para ela se entregar. A floresta tornou-se mais escura e mais fria a cada passo, deixando o desespero alastrar-se.

Num tropeço, Amélia não viu mais nada.

Ceres - Você sabe quem é o Inimigo [LIVRO 1 - COMPLETO]Onde histórias criam vida. Descubra agora