Capítulo 1: Eu vou surtar.

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Eu vou surtar. Tenho certeza que no exato momento que eu sair desta sala eu vou surtar pra valer. Tipo aqueles momentos que você simplesmente coloca o punho na boca e dá um grito silencioso, com a cabeça fervendo e o coração martelando na garganta. Aquele surto que leva poucos segundos, antes de a raiva passar e você cair em um choro feio e vergonhoso. Eu vou surtar exatamente desse jeito.

—Você está prestando atenção em mim, Manuela? —A professora Carla estalou os dedos na minha frente, erguendo os óculos de grau que pareciam o fundo de uma garrafa redonda de tão grossa que a lente era.

Ela enrugou os lábios em reprovação quando percebeu que eu não estava prestando atenção. Olhei para o relógio na parede atrás dela, percebendo que fazia 15 minutos que eu estava ali e havia passado os últimos 5 viajando sobre como eu odiava ter que aprender cálculo em química quando era péssima em matemática, antes da minha atenção se desviar para a bagunça na mesa dela.

E merda, eu estava viajando de novo, remexendo meus pés sem parar enquanto a via me julgar descaradamente com aqueles olhos escuros, de alguém que já tinha visto muito mais na vida do que eu. Tudo bem, eu tinha quase certeza que ela era uns 40 anos mais velha que eu. Levando em conta os meus 22 anos, então ela já estava ensinando antes mesmo de eu saber o que era química.

—Você tomou o seu remédio hoje? —Indagou, me fazendo corar e me encolher na cadeira.

—Sim. —Menti, descaradamente. Uma coisa eram meus pais perguntarem se eu havia bebido meu remédio hoje, outra totalmente diferente era uma das minhas professoras perguntando isso, como se estivéssemos falando do tempo.

Mas eu não havia tomado, porque ele havia acabado ontem e eu pretendia comprar hoje cedo, antes das aulas. Só que cometi o erro de entrar no meu e-mail assim que abri os olhos, encontrando um recado da professora Carla me questionando sobre o último trabalho, no qual eu a enviei pela metade.

Então eu estava com problemas. Primeiro, porque eu estava mais hiperativa e distraída do que deveria. Segundo, porque esse era um trabalho importante da matéria de cálculo, a qual eu sou péssima, então o trabalho era super importante. Mas por algum motivo meu cérebro deu pane em relação a ele.

—Me desculpa. Eu realmente não sei o que aconteceu. Me lembro de quando comecei o trabalho e o deixei para terminar depois. Não faço ideia de porque o enviei sem terminar. —Falei, vendo que nenhuma das minhas palavras surtiu qualquer efeito nela, já que aquela mulher de cabelos loiros e expressão firme era mais fria que uma pedra de gelo. —Tem algo que eu possa fazer?

—A data de entrega desse trabalho já passou e não posso te dar uma colher de chá por um lapso de desatenção sua. —Afirmou, me fazendo balançar a cabeça que sim, mesmo que eu quisesse implorar pra que ela me deixasse terminar o trabalho. —Vamos ter mais trabalhos e provas até o final do semestre. Sugiro que se esforce. Você é boa em todas as matérias de química, menos cálculo. Mas se reprovar nessa matéria, já sabe. Agora pode ir.

Fiquei de pé, mordendo o interior da bochecha quando acenei pra ela e sai da sala. O corredor estava vazio quando parei no meio dele e soltei um suspiro pesado, incapaz até mesmo de gritar. O pico de raiva foi embora antes mesmo que eu extravasasse, o que me deixava a beira daquelas lágrimas vergonhosas.

Mas me obriguei a engolir todas elas antes que elas saíssem. Havia passado a manhã toda pensando nesse trabalho e tentando me concentrar nas outras aulas, só pra ouvir a professora me dizer algo óbvio. Preciso me esforçar em cálculo, ou posso dar adeus a minha turma e um olá para a turma do semestre seguinte.

Sai da universidade com um peso enorme nos ombros, comprando meu remédio pelo caminho antes de ir pra casa. O apartamento estava cheirando a pizza quando cheguei, encontrando a garota de cabelos muito curtos e descoloridos escorada na pia da cozinha minúscula, com um livro em uma das mãos e um pedaço de pizza na outra.

—Pizza de novo? —Indaguei, parando na porta da cozinha. Júlia apontou para o livro, enquanto terminava de mastigar.

—Tenho prova sexta. Você sabe que eu paro de viver nesse momentos. —Ela deu de ombros, apontando para os pedaços que eram meus. —Por que perder tempo cozinhando se posso enfiar uma pizza no forno enquanto fico estudando?

Balancei a cabeça negativamente, abrindo um sorriso. Júlia estudava história, então ela estava sempre com o rosto enfiado em um livro. Era só um ano mais velha que eu, mas havíamos nos conhecido no meu primeiro ano de química e virado melhores amigas.

—Porque isso te daria um tempo pra relaxar. —Afirmei, pegando o prato e seguindo pra sala. Júlia veio atrás de mim, deixando o livro de lado para se concentrar em comer. —Fiz merda essa semana.

—Que tipo de merda?

—Do tipo que eu esqueço que não terminei o trabalho de cálculo e enviei pra professora mesmo assim. —Falei, observando uma rodela de calabresa deslizar pelo pedaço de pizza nas mãos de Júlia e cair sobre sua calça rasgada.

—Bah, sério? —Ela me encarou com certa pena quando confirmei com a cabeça.

—Não sei o que deu em mim. Não lembro de ter mandado o trabalho pra ela. —Suspirei, começando a comer, sabendo que tinha pouco tempo antes do trabalho. —O pior é que minhas notas em cálculo são ruins. Preciso melhorar até o final do semestre, ou vou ficar.

—Isso não vai acontecer, Manu. —Júlia balançou a cabeça negativamente. —Existe uma solução pra tudo.

—E qual seria a solução pra minha dificuldade com matemática? —Indaguei, xingando todos os estudiosos de matemática por terem inventado essa matéria e por terem enfiado isso no meio de química, por quem sou completamente apaixonada.

—Eu não sei. Mas vamos pensar em algo. —Ela piscou pra mim, tentando soar confiante. Mas eu estava começando a ficar preocupada. —Ou você esquece química e vem estudar história junto comigo.

Fiz uma careta, o que arrancou uma gargalhada dela. Eu não trocaria química por nada. Só precisava dar um jeito de melhorar minhas notas e tudo ficaria bem de novo.


Continua...

Todos os "eu te amo" não ditos / Vol. 1Onde histórias criam vida. Descubra agora