Capítulo 23: Foi bom ver você, pai.

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Quando desci do Uber, meu coração se retesou dentro do peito, parecendo prever o tsunami que iria me atingir a qualquer instante. Mas eu já estava acostumada com aquilo, então respirei fundo e caminhei em direção a casa pintada com um azul bebê. A grama estava cortada, mas o carro do meu pai não estava na garagem quando passei pelo portão de metal.

Esfreguei as mãos na bochecha para afastar o frio, mesmo que estivesse quente pra caramba naquele horário do dia, o que não era nenhuma novidade em um verão em Florianópolis. Era quente com um inferno. Mas eu estava tão fria quanto um cubo gelo quando toquei a campainha.

—Eu já vou! —Minha mãe gritou do outro lado, me fazendo engolir em seco e respirar fundo, contando até dez, antes dela finalmente abrir a porta. Seus olhos se reviraram quando ela me viu, antes de voltar para dentro. —Você demorou, já estava indo ligar de novo.

—Demorei pra conseguir um Uber. —Expliquei, por mais que isso fosse irrelevante pra ela, enquanto entrava e fechava a porta atrás de mim, observando a sala organizada. —O que aconteceu? Não entendi bem o que você disse pelo telefone.

—A Nina sumiu, Manuela. Não conseguimos encontrá-la em lugar nenhum e eu já estou começando a enlouquecer. —Eu segui ela até a cozinha, vendo ela parar na frente da pia e começar a descascar algumas batatas. —Preciso que vá procurar ela pra mim. Ela não deve ter ido muito longe. Pergunta para os vizinhos ou sei lá, só faz alguma coisa.

Ergui a mão para esfregar a testa, sentindo a frustração ameaçar explodir meu cérebro. Parecia que todo meu café da manhã havia voltado e se entalado na minha garganta.

—Quem é Nina? —Indaguei, vendo ela se virar pra mim com uma expressão emburrada.

—Como assim quem é Nina? A cachorra, Manuela. A cachorra! —Exclamou, como se eu estivesse ficando completamente louca. —Adotamos ela mês passado. Você sabe disso.

Não, eu não sabia. Eu não fazia a menor ideia. Quanto tempo fazia que eu não vinha pra casa? Meu último Natal e ano novo havia sido com Júlia e os pais dela. Parei de contar depois de 6 meses.

—Cadê o papai? —Indaguei, preferindo ignorar o fato de não saber sobre a nova inquilina da casa, porque aquilo iria criar um buraco no meu peito a qualquer momento.

—Heitor foi no mercado. A ideia da Nina foi dele e agora ele está furioso porque ela fugiu, descontando em mim. —Ela parou o que estava fazendo e se virou para me encarar. —Pode ir procurar a maldita cachorra ou não? Odeio ter que fazer tudo sozinha.

Eu a olhei. Olhei de verdade. Não pra minha mãe, mas pra Marta Campos de pé na minha frente, com os cabelos loiros presos em uma trança como se ela fosse uma mãe e esposa exemplar. Os olhos escuros me encarando com severidade, enquanto os lábios estavam enrugados em reprovação.

—Pode me mandar uma foto dela? Vou dar uma volta e perguntar por ai se alguém a viu. —Afirmei, vendo ela assentir e secar as mãos para pegar o celular. Sai da cozinha, encontrando uma guia em cima do sofá da sala. Peguei a mesma e sai de casa sem olhar pra trás.

[...]

Andei pelo bairro todo, por horas, mostrando a foto da pastor-australiano para as pessoas que eu encontrava pelo caminho, enquanto a procurava por cada canto. Não era obrigação minha, eu sei, mas a pobre cachorra não tinha culpa de ter sido adotada. Eu entendia bem a vontade dela de fugir de casa. Passei a adolescência toda imaginando como seria se eu tivesse ido parar em outra casa.

Eu também me sentia obrigada a ajudar, como se devesse alguma coisa pra eles. Filhos não deveriam dever nada aos pais além de amor incondicional, assim como os pais aos filhos. Mas a gente sabe que a maioria das famílias não é assim. Ou pelo menos a minha não é.

Soltei um suspiro pesado quando cheguei até a praça que havia no bairro, encontrando Nina deitada embaixo de uma árvore, provavelmente fugindo do sol quente. Um sorriso de alívio se abriu nos meus lábios, enquanto eu caminhava na direção que ela estava. Nina ergueu a cabeça quando me viu, balançando o rabo.

Seu pelo era uma mistura de preto com branco. Ainda era pequena e parecia muito tranquila, já que praticamente se jogou nos meus pés para pedir carinho. Soltei uma risada e me abaixei ao lado dela, fazendo carinho na sua barriga, enquanto notava que ela tinha uma coleira com o seu nome.

—É isso que eles fazem, não é? Nos dão um nome e então nós tratam como um peso pra carregar. —Prendi a guia na coleira dela, sem parar de agrada-lá. —Eu sei, Nina. Eu entendo.

Fiquei de pé, feliz por ela vir atrás de mim, como se estivesse acostumada a andar com a guia já, mesmo que meu cérebro não conseguisse imaginar minha mãe ou meu pai saindo pra passear com ela. Mas talvez eles fossem pessoas melhores com um cachorro do que com a própria filha.

Voltei pra casa com ela, comprimindo os lábios ao ver que meu pai já havia voltado. Era a hora do almoço, então eles provavelmente estavam comendo juntos. Dessa vez não bati na porta e apenas entrei, soltando a guia de Nina quando já havia fechado a porta atrás de mim.

—Ah, que bom! —Meu pai apareceu na porta da cozinha, passando as mãos nos cabelos escuros quando viu Nina, que foi na direção dele abanando o rabo. —Onde ela estava?

Nem um "oi, Manuela" ou um "estava com saudades, filha". Absolutamente nada.

—Na praça aqui do bairro. —Falei, deixando a guia sobre o sofá, vendo ele balançar a cabeça em aprovação, com a expressão dura quando olhou pra mim.

—Quer almoçar? —Indagou, de uma forma que estava muito claro pra mim que desejava que eu não aceitasse aquele convite. Não sei porque ele ainda se preocupava em tentar ser legal, quando eu sabia que não era.

—Não, obrigada. —Engoli o nó na minha garganta e voltei para a porta. —Eu vou voltar pra casa. Foi bom ver você, pai.

Ele não respondeu quando abri a porta e nem mesmo quando a fechei, atravessando o jardim para ir embora.

Continua...

Todos os "eu te amo" não ditos / Vol. 1Onde histórias criam vida. Descubra agora