40 | Feridas e suturas

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Catherine

Ainda me lembrava do momento exato em que seu coração se despedaçou diante dos meus olhos, mas não fiz nada para evitar. Fiquei ali, inabalável, desejando que aquilo terminasse logo para eu me esquecer do momento em que os olhos de Harry se cruzaram com os meus pela última vez. Eu vi ódio. E dor. E decepção. Mas aguentei. Aguentei até poder sair daquele quarto de hotel. E então tudo estava acabado. Não haveria mais amanheceres juntos, nem mais noites de palavras e beijos e música. Alguns pontos finais podem ser sentidos na pele. Na alma.

Me meti debaixo dos lençóis, apesar de não estar fazendo frio, e escondi a cabeça debaixo do travesseiro. Escuridão. Apenas escuridão. Na casa de meus pais não tinha nenhum barulho de carro passando na rua de vez em quando, nenhuma voz distante, apenas silêncio e meus próprios pensamentos, que pareciam estar gritando e se agitando, reprimidos.

Quando percebi que a ansiedade começava a apertar meu peito e a respiração ficava irregular, fechei os olhos com força e me agarrei aos lençóis, desejando que tudo desaparecesse. Tudo. Mas tudo vinha a tona.

Não me lembro de quando me apaixonei por Harry, não sei se foi em um dia específico ou se a sensação sempre esteve ali, sempre ansiando por um olhar ou um toque dele mais do que qualquer outra coisa no mundo.

Quando toquei os lábios dele, entendi que nada que eu fizesse para impedir teria valido o esforço. O medo que sentia de me entregar apenas se dissipou e senti. Beijá-lo tinha sido a faísca que incendiou tudo, do tipo que se acende e explode como fogos de artifício. Eu tinha sentido aquele frio na barriga. O sabor em seus lábios. Seus dedos em minha bochecha. Seu olhar me desnudando por dentro. Ele. Sempre ele. E renunciar a isso... era impossível.

Deitada na cama, fechei os olhos e me lembrei do beijo. Os lábios macios e ansiosos dele, a boca quente, as mãos se movendo pelo meu corpo, me segurando junto a ele. A respiração acelerada, o gosto dele, a voz rouca e sensual no meu ouvido. De alguma forma éramos uma mistura perfeita, como quando algo parece caótico, mas de repente, em um beijo, tudo se encaixa.

Harry deixou para trás um monte de pedacinhos que não conseguirei colar novamente. O mais insuportável era saber que ele não faria mais parte da minha vida. Que eu não voltaria a sentir um frio na barriga ao ver seu sorriso malicioso. Que ele não me daria um beijo apaixonado. Que eu não ouviria mais sua risada. Que ele não seria o amor da minha vida.

Eu tinha certeza que era ele.

Acho que é impossível saber como lidar com uma emoção até o momento em que ela te atinge e você passa a vivenciá-la na própria pele. Se alguém tivesse me perguntado, algum tempo atrás, eu teria respondido que eu era forte, que enfrentaria o processo de forma natural, que nunca me tornaria um fantasma que mal abria a boca. Mas às vezes a gente se engana. A gente cai. Às vezes a gente não se conhece tão bem quanto imagina. Às vezes... às vezes a vida é imprevisível.

Desde que tudo aconteceu eu ficara robotizada. Perdi meu emprego na Vogue, depois meu emprego como stylist, depois perdi Harry e por último perdi meu apartamento. Tudo fora arrancado de mim e minhas únicas emoções eram gritar, chorar, ou então não demonstrar nada.

Eu me sentia tão distante da minha vida de antes, de mim mesma, que às vezes achava que nunca me recuperaria. Havia se passado oito meses, e tudo continuava igual. Pior.

— Filha? — Reconheci a voz de minha mãe, e já sabia quais seriam suas palavras antes que ele as pronunciasse. Por isso andei até a porta do quarto e a destranquei — Pode abri... — Olhei para ela com a porta escancarada. Ela estava com uma expressão ansiosa — Trouxe nosso janta. Você não comeu, não é?

— Não. Sem fome.

— Jante apenas um pouco. Trouxe do seu restaurante favorito. — A segui até a cozinha com um sorriso forçado.

Olhei-me no espelho do corredor antes de voltar a sorrir forçado. Eu estava assustadora. O rosto pálido, sem vida.

— Você está...como está se sentindo? — Parecia que ela mudara a pergunta no meio da frase.

— Eu pensava que o pior sentimento do mundo era perder alguém que você ama. Mas eu estava errada. O pior sentimento é quando você percebe que se perdeu — Sinto meus olhos arderem com as lágrimas que se aproximavam mas não deixei elas virem — Eu perdi toda a ambição de conquistar meus sonhos, agora eu só sou apenas aquela que quer ser amada, por ele. O pior de tudo foi saber que eu causei tudo isso. A mim, e a ele.

— Você sabe melhor do que ninguém que é um mundo difícil e complicado, mas você é forte, filha, você sabe disso, não é? — Eu não acreditava nisso. Não me sentia nem um pouco forte.

Sinto falta de mim mesma, tanta falta que às vezes não consigo respirar. Não sei o que me tornei hoje. A parte colorida e reluzente da minha vida se apagou. Na verdade, se carbonizou e virou cinzas, do mesmo modo que eu, e não sei como acendê-la novamente como antes, tão pouco renascer como um fênix.

Pela primeira vez em muito tempo eu não sabia o que esperar do dia de amanhã.

Perguntei-me quanto tempo aquilo ia durar. Talvez mais um dia, anos mais tarde, se a dor diminuísse a um ponto que eu pudesse suportar. E se esse buraco jamais melhorasse? Se as bordas feridas nunca se curassem? Se os danos fossem permanentes e irreversíveis?

E, no entanto, achei que podia sobreviver. Talvez com o tempo eu ficasse forte o bastante para suportar.

— Você pode se enganar e cometer um monte de erros, todo mundo é assim. Às vezes, fazemos alguma besteira, mas para isso existe também o arrependimento, saber dizer "sinto muito" quando for preciso. Mas, querida, escuta o que vou te dizer: sabe o que é o mais triste quando deixa de fazer algo por covardia? É que, com o passar do tempo, quando pensar naquilo, você só vai poder pedir desculpas a você mesma por não ter se atrevido a ser corajosa.

— Obrigada mãe. Eu precisava disso.

— Pode sempre contar comigo. Sempre.

— Já que estamos falando de recomeços, Lana me chamou para dividir o apartamento com ela. Mas não sei se consigo voltar para Nova York, e nem estar tão perto de tudo que perdi.

— O que acabamos de falar sobre arrependimentos? Ser corajosa?

...

— Você deveria ir falar com Anna. Ela está desesperada! A nova editora de moda não entende o que ela quer. Ela vive falando "Você deveria aprender com a Catherine" — Lana tagarelava enquanto dispunha as coisas para o café da manhã. Reprimi um sorriso. — Ela vai se aposentar, e tem que passar o cargo de editora chefe, você sabe que passaria para você...

— Mas não estou mais lá.

— Você pode voltar. — sugeriu Lana, os olhos voltados para mim, planejando. Perguntei-me por quanto tempo aquilo estava acontecendo sem que eu percebesse.

— Não sei — disse. Eu ainda não conseguira afundar em minha concha protetora, e naquele dia tudo parecia próximo e nítido, o que era estranho. Tudo parecia um pouco melhor.

Enquanto eu ia para meu quarto, tive a sensação anormal do bem-estar. Eu não sabia qual emoção era a mais forte, o alívio ou o choque. Fiquei imóvel por alguns minutos, esperando que voltasse. Porque alguma sensação devia vir. Se não a dor, então o desespero. Esperei, mas nada aconteceu. Não acreditei que fosse durar.

Afastei aquele pensamento de minha mente e me concentrei, enquanto me vestia, no fato que Anna precisava de mim. A ideia fez com que eu me sentisse quase... esperançosa.

No almoço, Lana foi cuidadosa. Tentou esconder seu sorriso e seu olhar brilhante, concentrando-se no prato até acreditar que eu não estava percebendo.

— O que você vai fazer hoje? — perguntou ela, olhando minha roupa. Vendo que eu havia finalmente me arrumado como antes.

— Vou falar com Anna.

— Ah! Isso é...hum...maravilhoso — disse ela tentando controlar a alegria para não me assustar provavelmente.

— Talvez possa me dar uma carona — sugeri.

— É uma ótima ideia.

O abismo me puxou. E foi de lá que voltei mais forte.

Ever since Veneza | H.SOnde histórias criam vida. Descubra agora