SEIS

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Arabella | ano 323

Por muito tempo, questionei se Atlas não passara de um sonho febril; uma alucinação que criei para suprir o vazio em mim. No fim, todavia, eu sabia que era impossível fantasiar dezessete anos tão frescos na memória.

Todas as tardes após os treinos, eu ia para a floresta de vegetação azulada perto da tribo, na esperança de um dia encontrar Atlas perdido por lá. Levava sempre comigo uma cesta de pãezinhos para o caso de o encontrar faminto. Não podia demorar demais, caso o contrário minha mãe desconfiaria. Todas as noites, me perguntava se fora covarde o suficiente para matá-lo.

Foram anos em que gastava quantias ridículas de pães em comparação ao meu padrão — ainda indingente — de vida; anos estes que voltei para casa, todos os dias, sem nenhum vestígio da existência de Atlas. Como uma criança, eu não cogitava lugares longe de Marshaw; para mim Atlas se manteria em algum lugar por perto. Me forcei a aprender a atravessar paa que pudesse ir além da floresta — ainda com conceitos limitados da magnitude de Syfer.

Estes anos passaram; eu não era mais uma criança. Em pouco tempo, seria vendida — sozinha — para o Líder e casada com um de seus filhos. Meu desempenho manteve-se inabalável; assim como minha teimosia, felizmente. 

Um dia, eu ouvi passos atrás de mim. Me virei com o coraçãozinho cheio de esperança para não encontrar nada. Olhei para os lados; olhei para baixo. Não ousei chamar seu nome embora meus instintos gritassem para que o fizesse.  Alguns passos à minha frente, porém, havia apenas um passarinho me encarando. Suspirei, frustrada, mas abri um dos pães e deixei no chão; ele certamente estava com mais vontade de comer pão do que eu.

— Boa tarde — desejei à minha mãe. Nunca obtive resposta, mas ela gritaria comigo pela minha falta de educação se não o fizesse. Antes que se virasse para mim, guardo os pães em uma cesta.

— Por que demorou tanto?

— Estava conversando com os treinadores. Acho que posição está segura — comentei, fazendo questão de manter imparcialidade. Se eu fosse triste demais, seria um problema; se eu fosse feliz demais, não seria eu.

Seu silêncio significava algo um pouco melhor do que coisas ruins. Acostumada com o mesmo, subi as escadas até meu quarto.

Voltar para o quarto era um ritual mórbido e diário que fazia. Era vazio e espaçoso sem Atlas mesmo que fosse um cubículo minúsculo — porque era o que conseguíamos bancar. Sua cama ainda estava lá e eu me deitava nela com frequência, observando a pequena janela ao lado, abraçando as pernas. No ano novo, eu desejava à Aurora que trouxesse meu irmão de volta; que minha mãe morresse; que eu fosse qualquer coisa diferente de uma Pontiac.

Apesar da Casa Pontiac ser uma das mais ricas e influentes de Syfer, em nossa tribo o dinheiro sempre foi escasso de certa forma. A maior parte de nós é esnobe mesmo sem ter ouro e depende do desempenho dos filhos para serem vendidos à Casa Pontiac, casados com os filhos do Líder e ganhar a verdadeira fortuna. Eu não me importava com aquela vida até Atlas desaparecer.

Notei algo preso contra a janela quando me desvencilhei dos pensamentos e passei a observar meus arredores. Era um pedaço de papel.

Curiosa, abri a frestinha da janela para tirá-lo de lá; o que estava escrito fez meus olhos arregalaram-se e o coração ameaçar à sair pulando.

Me encontre na floresta de madrugada,

Atlas

PS. Obrigado pelo agrado hoje de manhã, estou com saudade.

Dias atuais

Voltar para o princípio é tudo que me resta. Minhas origens e propósito são o que me mantém forte, pronta para encarar a morte. Meus braços não funcionam mais, meus olhos não enxergam. Estou tanto tempo sob o efeito de Pedra Negra que meus dons não devem passar de uma mera lembrança do que um dia eu controlava com maestria. Eu não consigo vê-lo, mas consigo sentir sua presença em minha cela. A nova putinha da Governadora. Ele veio para me torturar, certamente.

A lembrança de cada osso se rompendo em meu corpo e o barulho alto e nauseante seguido pela dor pungente faz meu coração bater mais rápido e minha pele se arrepiar; até isso dói. Mesmo assim, sorrio, mantendo a mesma imagem que sempre fiz questão de manter em Syfer; eu não ligo; eu acho graça; eu domino; meu ego é inabalável. Não preciso ser capaz de ver para saber que isso o irrita profundamente e toda sua raiva será descontada em meu corpo. Sinceramente, espero que eu morra.

— O maior erro de Joah foi colocar você no lugar de Emma — cuspo. — Ela era uma líder. Você, é um fantoche.

— Se Emma era tão boa assim, por que não se deu ao trabalho de te resgatar? — retruca. Sei que isso o atingiu de alguma forma, por mais que sua voz não se mostre abalada. Suspiro; quando pisco a sensação é torturante.

— Ela fez a escolha certa.

Ainda estou atirada no chão, do mesmo jeito que fui deixada quando deslocaram minhas escápulas. Isaac segura meus cabelos longos com força, levando meu tronco para cima em uma posição no mínimo desconfortável. A dor é terrivelmente familiar e me deixa dopada. Um urro de agonia escapa de minha garganta; ele se aproxima do meu ouvido.

Chega de brincar, Arabella. Conte-nos o que sabe.

Rio fraco, minhas costelas me fazem sofrer as consequências.

— O que te faz pensar que eu sei mais que você, seu verme? — Ele empurra minha cabeça contra o chão; eu grito, mas não retiro o que disse. Sinto minha pele rasgando e meu raciocínio ficando mais lento.

— Última chance, Arabella. Se você abrir a boca, posso te tirar daqui.

— Eu pensei... — digo com dificuldade, entre tentativas desesperadas de procurar por oxigênio — ...eu pensei que iria parar de mentir agora que está aqui, General.

A última coisa que me lembro é o frio na barriga, se fundindo com a dor desmedida que me preenchia conforme meu crânio choava-se com o chão pela segunda vez com velocidade e pressão o suficiente para me fazer apagar.

Quebradora da MaldiçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora