DEZESSEIS

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SUA VISÃO ESTÁ COMPLETAMENTE TURVA conforme acorda. Sem sua boca seca demais repousa um gosto de metal enjoativo, sua cabeça está pesada demais; os primeiros segundos são o mais difíceis. O que aconteceu mesmo? Ela se força a lembrar do garoto. Como era sua aparência? Cabelo escuro, cílios longos, olhos castanhos, atitute nojenta... qual era seu nome?

Seu coração, já acelerado, aumenta a frequência quando se lembra do que prometeu à ele para se salvar. Ela tenta se mover, mas está presa à uma cadeira. Olhando em volta, percebe que está em um beco escuro. Está frio, a chuva corre com força, seu corpo treme. Há duas pessoas a sua volta, próximas a seu corpo de formas desconfortáveis.

"...no momento em que você acordar, grite socorro."

SOCORRO!

As pessoas fogem.

SOCORRO!

Passos lamacentos reverberam pelo beco. Eles se aproximam com constância e força demais para pertencerem a uma única pessoa. Malia arfa por ar, procurando pela direção de tamanha movimentação, mas é difícil de enxergar entre o breu da noite e as gotas de água acumuladas em seus cílios.

Uma grande linha de luz se forma até a garota, movimentando-se com lentidão até finalmente encontrar seu rosto. A luz é forte demais para identificar quem está por trás dela e a obriga a cerrar os olhos para ajustar a visão.

— Socorro! — Malia pede mais uma vez, sentindo a chuva aumentar e seus dentes se chocando com o frio.

— Por aqui! — chama o homem ao longe. Ainda assim, ele não parece se referir a ela.

A fonte daquela luz se aproxima aligeirando-se, diminuindo a luz a cada passo de sua corrida até a refém. Quando Malia finalmente é capaz de identificar quem é a voz desconhecida, seu rosto empalidece.

Isaac.

Seus cabelos loiros encaracolados, suas roupas e seu rosto completamente imparcial estão encharcados e ele a encara ofegante, cessando a grande risca de luz que produzia com suas próprias mãos. Malia quase se impressiona até se lembrar que este é o dom de Isaac. Os Bellarose manipulam luz, e ela só não o faz porque é uma maldita humana. Entre seu desespero, a garota arruma lugar para certa inveja. Ela gostaria de ser capaz de fazer isso.

Mais pessoas correm em sua direção, dezenas delas. Guardas. Parece que seu desaparecimento realmente causou uma comoção dramática, exatamente como o garoto que a sequestrou manifestou.

O General se ocupa em desatar os nós dos membros de Mali, feitos de corda barata e atados de forma completamente desleixada. Ele franze o cenho, analizando a pouca complexidade dos nós sem conseguir determinar se a capacidade de Mali foi subestimada ou significavam algo mais.

— O que está acontecendo? — choraminga com a voz embriagada.

— Não se preocupe — Isaac murmura. Não importa mais. Agora que a humana insolente foi encontrada, afinal, não há motivos para Joah cortar sua garganta.

Ele olha para o longe, vendo seus homens se aproximarem juntos ao barulho incessante de grandes poças de água sendo pisoteadas. O cheiro de terra se mistura com o de poluição e esgoto provocada pelas fábricas de Ridenville e lhe causa certa repulsa. Há uma carruagem os esperando há alguns metros deste beco.

— Você ficará bem.

Uma vez que Malia está entre as cobertas e sobre os cuidados de curandeiras, as perguntas começam sem rodeios.

— Do que você se lembra, malia? — interroga Lira com a mais doce das vozes, brincando discretamente com seu vestido alaranjado de cetim, capaz de oferecer um aspecto dourado à sua pele negra em plena noite nublada e conversa com as velas do quarto da humana de forma aconchegante. Ela se senta em uma poltrona, de frente para a cama de Malia.

"Você não se lembra de nada, está apavorada."

— Eu... não me lembro — murmura, massageando as têmporas com os ombros encolhidos, encostados na cabeceira da cama.

Se há uma coisa que Mali não precisará fingir será seu pavor. E ela deixa as lágrimas de medo se passarem por lágrimas de frustração na frente de Lira. Lágrimas são lágrimas, você pode dar o contexto que quiser no momento em que deixam seu corpo se acreditar com vontade.

— Havia algúem com você? — a Pesquisadora insiste.

"Você trabalha para mim."

Não — ela soluça, percebendo onde se enfiou há algumas horas atrás. Isso a lembra de quando Callia ouviu Lowan acorrentado no terceiro andar da caravela, dopado e implorando por ajuda por entre as frestas de madeira podre.

Socorro — ela ouvia logo abaixo de seu quarto de forma tão abafada, mas ainda assim tão nitidamente. Quando se voltava à Callia, completamente aturdida por aquela voz tão frágil as coisas tornavam-se ainda piores. Diga algo, sua mente a testava. Diga algo e não seremos culpadas. E mesmo assim, ela não se permitiu dizer. Sim, sim, eu também estou ouvindo! A culpa é minha!

— Eu não me lembro de nada — suspira entre os joelhos abraçados contra o peito; os olhos inchados e nariz conjestionado por toda a culpa escorrendo em seu rosto. Depois de viver uma vida de mentiras, não fica tão difícil exercer sua função. Ela odeia este palácio e odeia a compaixão de Lira e seus olhos melancólicos tão tolos ainda mais. Ela também sente nojo de si mesma. Sua habilidade de fingir consegue surpreender a si mesma até hoje em alguns cenários.

"Esse evento vai te traumatizar por alguns dias em que você gostaria de ficar longe de atividades sociais no palácio."

— Talvez eu devesse passar alguns dias por aqui, sabe. Minha mente está uma bagunça — instiga, passando as mãos pelos cabelos curtos loiros, ainda húmidos do banho que tomou.

— Claro, tenho certeza que isso não será um problema. A Governadora não tem planos para você esta semana além de uma visita à Marshaw para conhcer algumas tribos em alguns dias. Os ataques rebeldes são algo que lutamos para previnir, e sua presença faz atua grandiosamente nesta mudança. Entendo sua situação, nós sentimos muito por termos falhado em te protejer — lamenta Lira.

Alguns dias. Malia sabe que passar por baixo do nariz da Governadora será terrível. Mas devem haver riscos piores. Estou consertando meus atos.

Quebradora da MaldiçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora