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Arquipélago das Fênix

Não passava das seis quando um mordomo bateu as portas do quarto de Merlin; sua pressa era digna de uma notícia fatal como a de uma tsunami.

— Sim? — Merlin responde, e ele logo abre a porta.

— Vossa alteza, a corte do Leste chegou!

A princesa arregala os olhos. Suas vestes não são apropriadas e seu rosto está roxo de tanto chorar. A Corte de Éris informou que chegaria em questão de alguns dias, mas eles demoraram doze horas!

Não os deixe entrar! — exclama Merlin, enterrada no closet, agora quatro vezes mais apressada, com uma criada a seguindo sem ritmo.

Ela procura por algum vestido digno de se usar ao trono enquanto sua mente se perde nas paranóias. Ela precisa contar à Corte de Éris; caso contrário eles solicitaram visitar o leito do rei se assim fosse autorizado. Talvez fosse possível enganá-los, mas as consequências seriam fatais. A verdade viria à tona em algum momento e Merlin perderia toda a credibilidade que ainda restava — esta que já era pouca. Mas que falta de cortesia da corte do Leste em não avisar sua chegada com antecedência.

O corset estava apertado demais, mas a cor era apropriada. Não havia tempo o suficiente para prender a coroa em seu cabelo, então teve de ser encaixada entre os chifres e rezar para que não caísse. Por cima do vestido, a princesa coloca um roupão de ceda trasnlúcido com mangas bufantes e atravessa até a sala do trono. Não parou por um segundo sequer, e sua respiração está excessivamente irregular. Ela se senta no trono e — mesmo se quisesse — seria impossível perder a postura ou relaxar com aquele corset. Suas mãos vão às têmporas; ela está suando frio. É impossível não amaldiçoar Oriwest e a Quebradora da Maldição pelas consequências de seus atos tão inconsequentes. Sem Berk, Merlin não sabe se conseguirá lidar com a pressão da realeza sozinha.

Com sorte, ela não precisará. Em breve.

E talvez Tariq pudesse ajudá-la.

— Vossa alteza, permissão para abrir os portões?

— Leve à corte à seus leitos e diga que nos veremos no jantar. Ofereçam-nos alguns agrados salgados e vinho em cada um dos leitos o mais rápido que conseguirem. Com sorte isso deverá apaziguar a insatisfação. Aqui, traga Tariq, mas apenas ele.

— Como desejar — responde o guarda, fazendo uma reverência profunda e direcionando-se até os grandes portões envidraçados.

Em poucos segundos, Tariq está caminhando até o trono. Merlin levanta-se rapidamente, ela sente seus olhos ardendo e deseja poder abraçar a única família que lhe restou, mas sabe que se privou de fazer isso há muito tempo. Todos os dias que tem a oportunidade de ver Tariq ela se pergunta se este será o último. Ele certamente ainda a vê como uma sobrinha, e não importa o quão rude ela seja para as pessoas à sua volta e as cortes desde que descobriu seu destino, ela jamais conseguiu agir da mesma forma com Tariq. Ele a ama, e isso é um problema.

Tariq está mais velho, mais lento, ainda que são. Suas rugas caem sobre os olhos e seus grossos óculos. Ela se pergunta se é a causa de seu envelhecimento tão rápido. Seu coração se parte em pedaços pela culpa de existir; culpa de outras pessoas, mas o fardo que ela — e apenas ela — carregará para sempre.

Ele a reverencia sutilmente, depositando seu peso no grande cedro de madeira que usa como bengala.

— Diga-me, criança, o que está acontecendo?

Merlin suspira, juntando os estilhaços do que sobrou de sua coragem para este único momento. Isso não vai ser fácil, mas precisa ser feito.

— Siga-me, por favor?

O templo era pequeno e arejado, feito como um memorial para a nova geração da família Wyvern, com o intuito de proteger seus feitos e legado. Tariq já sabia que havia algo errado quando Merlin escolhe Kenna — o dragão de Berk — para levá-los até onde deseja. Estar naquele lugar não era nada mais do que confirmar suas suspeitas. Ainda assim, ele manteve-se calado. O local era bem arborizado e verde, cheirava à flores e briza fresca; trazia paz. Merlin esteve aqui uma semana atrás, para enterrar seu pai. Ela foi a única a comparecer ao seu enterro.

Não haviam homenagens do povo, uma quantidade exacerbada de flores em volta, ou cartas e amuletos para lhe desejar sorte em sua próxima jornada. Quando o templo foi construído, Merlin não o imaginava vazio como estava após a morte de seu pai. Ainda era pacífico, mas errado. Ao lado de sua lápide, a de sua mãe era mais extravagante. O nó no estomago de Merlin a impede de dizer algo por alguns minutos; Tariq observa a lápide extra.

EM MEMÓRIA DE BERK WYVERN, O VITORIOSO
TEMPOS ANTIGOS - MYLIAND, 689

AMADO PAI, MARIDO E REI DE UMA PRÓSPERA NAÇÃO

Seu amigo ajoelha em respeito, fazendo uma reverência mais profunda do que sua saúde permite; naquela hora não importava, Berk merecia.

— Ele está morto — sussurra Merlin, sentindo os olhos marejaram e embaçando sua visão e o alívio estranho que a invade após contar a verdade para alguém. Ela cruza os braços, abraçando o próprio corpo, imaginando que os braços fossem os de Berk, sua mãe, ou Jasper.

Todas as pessoas que matei.

Para Merlin, solitude era um vazio redundante.

— Você cometeu um erro — aponta Tariq na mais doce das vozes.

— Eu sei. — Eu deveria ter anunciado ao público, se não fosse tão covarde... — Ao menos aumentará o ódio do povo por mim no momento certo.

— O que quer dizer? — questiona, virando-se abruptamente para observar a princesa. Suas grossas sobrancelhas brancas pela idade mostravam sua confusão genuína e um toque de medo por trás de seu tom.

— Não posso ser rainha. Vou matar o povo como matei meu pai.

— Certamente você não o matou. Todos ficamos sabendo do ataque; muitos de nós presenciaram. Syfer o matou.

— Ele estava fraco, e a culpa é minha.

— Olha, garota... isso iria acontecer em algum momento. Berk só não estava mais velho do que eu — aponta, tentando soar como um consolo. Entretanto, por baixo de seu sorriso, seu tom era frágil.

— Mas eu não posso ser rainha, Tariq. Vou condenar o povo no minuto em que sentar naquele trono oficialmente e o povo jurar...

— Sempre amá-la — completa, pensativo. Ele não vê, mas algumas lágrimas percorrem o rosto de Merlin naquele momento. Estas lágrimas são poucas, mas fortes. — De qualquer forma, você precisa fazer o anúncio logo, o povo está ficando impaciente, e naturalmente as cortes em breve ficarão igualmente. Nós podemos mudar o juramento...

— Não. O juramento é uma tradição, e muito provavelmente não será garantia da vida de muitos mesmo que eu fosse a pior rainha que já pisou nestas terras.

— É nossa última esperança, não?

Os lábios de Merlin formam uma linha. Ela endireita sua postura, observando a lápide de seu pai. Lendo cada uma daquelas palavras cravadas no mármore cinza. Lhe leva um último suspiro para lhe encorajar a negar com a cabeça. Por fim, ela anuncia:

— Tenho um plano melhor. Você não vai gostar, nem eu mesma gosto. Ainda assim, esta é nossa verdadeira última esperança. E isso envolve o filho perdido de Toran como o novo rei de Keres.

Quebradora da MaldiçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora