VINTE E QUATRO

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LOWAN SE FOI há três horas atrás com Keres.

Talvez ele tenha tomado sua decisão final por mera teimosia. Talvez nós mal sejamos aliados depois de nossa última interação. Suas últimas palavras ecoam em minha mente por mais vezes do que consigo contar nos dedos. Talvez eu tenha dito pior.

Não sei se gostaria de me aliar à Keres depois do que aconteceu. Minha raiva me faz querer lhes enviar uma carta recusando qualquer participação sua na guerra. Ainda assim, não podemos dispensar ajuda.

Minhas lágrimas não param de correr mesmo sabendo que parte de tudo isso foi culpa minha.

...Garota ingrata...

As batidas gentis na porta indicam que não é Emma. Cambaleio para fora da cama para encontrar com Maara do outro lado. Limpo as lágrimas do rosto amassado e vermelho quando percebo que minha aparência deve estar deplorável.

— Sim? — pergunto, forçando meus soluços a cessarem. Ela esboça um sorriso terno como o de uma mãe. Talvez Elena me olhasse exatamente assim nesta situação se ainda estivesse viva.

Isso só me faz querer desabar ainda mais.

— Vou entrar, okay? — ela se convida, passando por mim e sentando-se na mesma cama em que me deitava. Fecho a porta em seguida. Ray passa correndo pela fresta antes que fique completamente fechada e termina seu caminho alucinado nos cabelos de Maara.

— Callia...

Levanto uma mão, fazendo-a se calar.

— Sei que tivemos experiências com a mesma família, Maara, mas isso não significa que estou aberta a conselhos.

— Não vim te dar conselhos — ela nega com a cabeça, quase desacreditada que sua visita foi associada a tal coisa. — Qualquer Wyvern, ou Hawlett, não vale o chão que pisa — desdenha. — Vim apenas conversar.

Suspiro, sentando-me ao seu lado, limpando as lágrimas pela terceira vez.

— Essa guerra está me deixando louca — confesso baixinho.

— Você provavelmente era louca muito antes dessa guerra — brinca, passando as mãos pelos meus cabelos que um dia foram cheios, ondulados e brilhantes, mas tornaram-se ralos conforme me perdi de mim mesma. — As pessoas em Myliand são difíceis.

— Sei disso. Eu vendi minha alma para você.

Maara ri.

— Verdade. E veja onde estamos agora! Pai e filhos que nos causaram dor, mas assim como eu, você irá sarar. Espero que não tenha que morrer para isso.

— Eu já morri uma vez — revelo, sentindo cada centímetro do meu corpo arrepiar com a memória. As lágrimas são mais densas agora, mas eu as deixo correr.

Lágrimas derramadas por meus próprios erros parecem aliviar minha dor de alguma forma. Aquelas que derramo pelos outros inundam feridas que ardem demais. Mesmo assim, não acredito que estou me abrindo para Maara.

...Você soa desesperada...

Talvez eu esteja.

Maara se aproxima de mim e me abraça sem pedir permissão. Ela fica em silêncio por alguns segundos e me pergunto porquê ela está agindo assim. Por que ela não age como a lunática que sua família a descreve? Por que ela tem compaixão por mim?

...Porque, um dia, ela foi como você...

Maara me oferece um ombro para chorar até que eu decida que ela deva se afastar. Não acho que alguém me abraçou desta forma desde que vim parar nesta selva. Lembra-me da forma como Luke me abraçava no fim de um dia ruim, quando ele entendia que não precisávamos conversar sobre o que me afligia, mas sim oferecer suporte por meio de outros gestos.

Por alguns segundos, me sinto uma garotinha novamente.

— Você já foi próxima dos seus irmãos? — pergunto, mudando de assunto quando ela se afasta, abraçando as pernas contra o peito. Ela se recostou na parede de forma relaxada antes de prosseguir:

— Talvez há alguns milhares de anos atrás nós fôssemos mais próximos.

Ray se remexe entre os lençóis com curiosidade. Maara joga um cobertor em cima da sombrinha de forma provocativa e Ray luta para sair de forma cômica. A cena me faz esboçar um sorriso fraco.

— Cada um de nós tomou um rumo diferente durante os Tempos Antigos, sabe — ela continua. — Vangelis nunca estava em casa, ocupado demais explorando os sete mares com seu grupinho de esnobes e só voltava para comparecer a conferências como convidado de nosso pai; Delroy arrastava Édra para qualquer lugar que a ajudasse a clarear a mente, e era uma tarefa complexa; Eros se afundava em pesquisas sobre sabe-se-deus-o-que longe do nosso continente; Lupe e Adella... bem, elas eram mais caseiras. Gostavam muito de puxar o saco do nosso pai achando que ganhariam algo com isso. Ainda assim, todos se foram.

— E você?

— Eu me tornava progressivamente mais obcecada por política. Participei da concretização de governos e atendi a bailes por todo o continente — cantou com o olhar distante. — Quando Myliand foi criada, nós nos reencontramos e aceitamos silenciosamente que deveríamos nos alocar em um único lugar para fortalecer a tribo Zarvos. Eu vi o novo governo como uma forma de me tornar mais influente; era obcecada pela Governadora e cheguei a me tornar algo semelhante a sua dama de companhia durante bons anos. Não me proporcionou grandes frutos, como deve saber — lamenta. — No fim, não consegui me despedir de nenhum dos meus irmãos.

— Sinto muito.

— Não sinta, parte deles só convivia comigo por educação — zomba.

— Você sabe para onde Édra ou Eros foram? — questionei.

— Um deles certamente está no artefato de Powal — ela afirma, assentindo. — O outro... deve ter fugido ou se matado há muito tempo. Se um deles ainda estivesse vivo nós saberíamos por agora.

Nós permanecemos em silêncio, digerindo todas as informações e reações que ambas atiramos em cima da outra sem pausa. Observo Maara e o quão viva ela parece desde que voltou. Ela possui milhares de demônios, uma reputação questionável e uma sede por vingança insaciável escondida por trás de seus oitenta anos aprisionada. Ainda assim, ela não parece usar uma máscara como qualquer outra pessoa aqui. Se ela está triste, feliz, ou se sentindo provocativa e tagarela, ela o demonstra sem rodeios.

Talvez seja por isso que Maara seja tão desprezada. E por isso que ela também não se importe com isso.

Ray certamente seria a primeira pessoa a acolher qualquer uma de suas versões. Talvez ela só precise disso depois de tudo.

— O que você pretende fazer quando a guerra acabar? Depois que você conseguir sua vingança? — pergunto. Ela entrelaça os dedos nos joelhos como se preparando para refletir em sua resposta.

— Alguns dizem que nós não devemos procurar vingança para encontrar a verdadeira satisfação. Eu tive a chance de recomeçar se assim eu desejasse; era bem tentador, para ser sincera. Ainda assim, recomeçar não me permitirá evoluir. Quando tudo isso acabar, vou continuar minha história da forma que sempre deveria ter sido escrita.

— Parece um bom plano — concordo

— E você?

— Não sei se conseguiria me permitir pensar sobre isso. Antes de tudo, preciso resolver uma maldição. Eu não quero mais cometer erros idiotas.

...De qualquer forma, provavelmente não estará viva no futuro...

— Bem, acho que, pensando bem, eu quero algo — acrescento com rapidez. — Eu quero me doar para outras coisas; quero aprender quem sou eu, aprender de verdade.

Depois de uma pausa silenciosa, os olhos de Maara brilham. Ela abre um sorriso orgulhoso, deposita três tapinhas na lateral do meu braço e repete com gosto:

— Parece um bom plano.

Quebradora da MaldiçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora