DOZE

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É impossível negociar com um Laventri. Foi isso que Emma me disse enquanto carregamos a caravela. Nós duas e Allerick fomos responsáveis por revisar os andares da caravela antes que qualquer outra pessoa pudesse embarcar. Não era mais um barco antigo, e seus andares eram menos sujos. Nós procuramos explosivos; eu procurei por pessoas acorrentadas.

Depois de não encontrar nada, Peter, Lowan, Darcio e Maara estavam livres para embarcar. Decidimos levar Maara por ser uma mestre em poções — e ainda temia que alguém não sobrevivesse à sua presença no palácio se a deixássemos lá.

Segundo Emma, os Laventri são um reino submerso que também é isolado do resto de Myliand. Mas ao contrário de Keres — que se isolou das províncias por preferência —, os Laventri foram isolados pelas províncias como uma medida de segurança. Seus olhos e cabelos são roxos e sua população é composta por sereias e seres capazes respirar debaixo d'água, que podem ser medusas ou elementares poderosíssimos.

Sereias.

A cada dia que passa, Myliand parece menos real.

E claro, não podemos negociar com eles porque matam seus visitantes.

Organizar um plano com destino submerso é difícil por muitos motivos e acredito que eu seja o mais difícil deles.

Eu terei que mergulhar.

Eu terei que sentir a água me envolvendo e meu corpo completamente submerso e não sei se sou mesmo capaz de fazer isso depois da caixa de vidro.

Com um oceano à minha volta, já é impossível fingir que este problema não existe. Além disso, nós precisamos de roupas de mergulho e um elementar poderoso para manter uma fonte de oxigênio mesmo debaixo da superfície. Maara fará uma cobertura extra de resistência em nosso corpo para que possamos durar mais tempo naquelas condições e sempre haverá a possibilidade de que iremos sufocar.

O tempo está acabando...

Eu não quero morrer.

Emma entrega à Peter e eu nossas vestes de mergulho, sinto um calafrio correr por meu corpo e meus músculos se enrijecendo. Ela entra no quarto comigo para me ajudar a colocá-la.

— Precisamos tirar suas ataduras. Caso contrário elas vão absorver água e tornar sua locomoção mais difícil — informa. Engulo em seco, mas assinto. Meu estômago parece tão embrulhado que sinto que vou vomitar.

Nós tiramos minhas ataduras com cuidado. No fim, a friagem passa por meu corpo completamente exposto e dolorido, arrepiando minha pele. Há muitas cicatrizes grossas em meus braços e pernas e muitos outros cortes que ainda parecem inchados e vermelhos. Quando tomo banho, não gosto de olhar para baixo e ver o que fiz comigo mesma; aqui, não tenho escolha senão encarar as consequências.

O traje de mergulho é composto por duas peças finas e justas azul claras como a cor da água que se conectam quando vestidas. Meus braços e pernas ficam expostos demais e me causam certo desconforto. De sua própria mala, Emma tira uma vasilha cheia de uma substância gelatinosa e esverdeada.

— Este musgo vai proteger seus cortes de infeccionar sem prejudicar sua locomoção.

Sem outras formalidades, Emma aplica o musgo em meu corpo. A substância é gelada e gosmenta e possui um cheiro azedo.

— Certo — murmurou quando se deu por satisfeita. — Você tem alguma pergunta relevante antes de subirmos até o convés?

O que vai acontecer se eu morrer?

Para esta pergunta, eu já sei a resposta. E ela é terrível.

Faço que não com a cabeça.

— Veja, eu sei que você está nervosa, mas acreditamos em você. Você já fez merdas demais desde que te conheci para morrer aqui — acrescenta. Minha resposta é um sorriso amarelo. Ela não faz ideia do que aconteceu em Syfer — ela não faz ideia da caixa de vidro e de como eu me senti morta.

Sigo Emma de volta ao convés. A caravela já estava parada e o frio recebe meu corpo quatro vezes pior. Me sinto exposta demais nestas circunstâncias, meu rosto queima com a vergonha e talvez eu entenda um terço da vergonha que Lowan sente sobre seu corpo.

— Tem certeza de que não haviam roupas mais apropriadas? — pergunto, envolvendo-me em meus próprios braços.

— Nem me fale — Peter concorda atrás de mim. Sua roupa era idêntica a minha, mas lhe servia melhor. Ele era esguio e seu traje acompanhava suas curvas perfeitamente. A rigidez em sua postura mostrava o mesmo desconforto que eu sentia.

Maara se aproxima de nós com gentileza, segurando dois frascos cilíndricos e os entregando a mim e meu irmão. Nós nos entreolhamos, hesitantes.

— O gosto é peculiar, mas funcionará, acreditem.

Respiro fundo e viro o líquido em um gole. Certamente era algo entre água do mar e terra com ervas secas mal misturadas. Em alguns segundos, a tontura me atinge. Maara segura meus ombros.

— A vertigem é comum, mas deve passar assim que entrarem na água. Procurem pelas estruturas de Marisol abaixo da cidade e o artefato deve estar por lá. Os Laventri são criaturas extremamente enigmáticas e não duvido que haverá algum preço para encontrar o artefato, então estejam preparados.

Observo a água sob nós. São as mais cristalinas que já vi e ainda assim não consigo identificar seu fundo. Meu corpo se paralisa. Minhas pernas parecem entorpecidas pelo pavor de entrar novamente debaixo d'água e da possibilidade de que talvez eu não sobreviva por inúmeros fatores pairando no ar. O gosto de metal se funde com o gosto residual da poção que Maara nos fez ingerir em minha boca e me deixa ainda mais enjoada. Minha visão fica turva e desfoca o oceano a centímetros de mim. Eu não quero sentir a água entrando e queimando meus pulmões quando nós falharmos e me recuso a estar à beira da morte desta forma novamente. Por maiores os danos que a escuridão tenham me causado, a Governadora conseguiu estampar o mais marcante de todos além da pele. Toda vez que vejo água sou incapaz de fugir das memórias da pior noite da minha vida. Talvez eu devesse deixar a raiva me mover, mas temo que ainda não seja forte o suficiente para isso.

— Quando você estiver pronta, pule — Peter encoraja, mergulhando na água ainda que hesitante, deixando respingos sobre o convés. Os poucos que me atingem me dizem que a temperatura do oceano é ainda mais gélida do que a da atmosfera e por isso meus ossos doem. Ele faz cara feia quando um calafrio o atinge.

Isso vai ser terrível.

O tempo está acabando e a culpa está começando a se tornar sua, garota tola...

Engulo em seco. O peso de muitas coisas está sobre meus ombros.

Olho para trás, onde meus companheiros me observam, até encontrar Lowan. Seu olhar é terno e caloroso por pior que seja meu estado neste momento Ele assente para mim com o rosto levemente iluminado e sei que ele não está feliz por muitos motivos mas quer que eu tenha coragem. Minhas mãos tremem e sei que não é fruto do frio.

Dias poderiam ter se passado enquanto eu me perdia em minhas próprias paranóias.

— Callia, seria bom começarmos isso enquanto ainda temos a luz do dia — alerta Peter, ouço o barulho de seus dentes se chocando. Não consigo vê-lo, presa no transe de encarar meus próprios pés e sua proximidade perigosa com a água que cedo ou tarde terá de ser rompida.

Eu posso morrer a qualquer momento.

Inspiro fundo, contando cada respiração como se fossem as últimas. Não me sinto pronta, não me sinto feliz ou muito menos em controle de mim mesma; mas ainda assim, eu mergulho.

Quebradora da MaldiçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora