O que é que eu estou fazendo aqui?
É quinta-feira e eu nem gosto de quintas-feiras, ainda mais para sair de casa. Ainda mais para ficar esmagada em meio a uma multidão como essa. Ainda mais para gastar o último pingo de dignidade que eu tenho, ouvindo minha própria música sendo jogada contra mim.
Há um palco de quase dois metros de altura à minha frente e em cima dele, a razão da minha dignidade estar indo para o ralo.
Ana Luiza Fontes – ou como todos a conhecem agora, apenas Lu – é a quinta maior cantora pop que temos no país e isso é um grande feito para uma mulher de vinte e cinco anos, com exatos cinco anos de carreira, cujo metade dela se passou em uma pandemia.
É também minha ex-namorada.
Por um acaso, a música que está cantando neste exato momento, foi a última que compus pra ela – e o único resquício da antiga carreira independente na cena R&B nacional, quando ainda usava o nome AnaLu, antes do contrato com a Sky Records, antes do time de empresários influentes, antes do hit viral e antes de um coração partido: o meu.
Ironicamente, a letra fala de traição, não uma traição romântica, uma simbólica. Algo que, claro, ela ressignificou com um videoclipe quase erótico – como manda a moda atual. A segunda ironia dessa situação toda é que foi exatamente essa música quem a jogou no estrelato e a fez ser quem ela é hoje.
A música que fiz para dizer a ela o que eu estava sentindo sobre sua decisão de se moldar para a indústria em busca de fama, foi a música que, no fim das contas, a ajudou a se moldar. O universo deve me odiar mesmo.
Agora, enquanto ouço as pessoas gritarem a minha letra, sem saber que estão esmagando a compositora do grande hit, e observo Lu completar com seus agudos potentes do palco, volto a me perguntar o que caralhos estou fazendo aqui?
Onde eu estava com a cabeça em vir?
Porque raios fui olhar aquele direct?
Porque eu me odeio tanto?
Eu deveria ter bloqueado qualquer uma de suas contas quando resolvi ir embora e deixar que ela se perdesse para o show de horrores que é o mainstream desse país.
Não, eu não sou uma odiadora cult do mainstream, nem nada disso. Eu apenas não concordo que artistas mudem suas inclinações só para ter um hit viral no Spotify. Se todo mundo fizer a mesma coisa, se comportar da mesma forma e dar as mesmas respostas só para agradar, o que sobra da arte que os moveu inicialmente? Não acho que ninguém deva se moldar para se encaixar e, de qualquer forma, ela ia hitar com ou sem essa gente lhe dizendo o que fazer. Porque, puta que pariu, a Lu é boa!
Apesar dos pesares, não posso deixar de admitir isso.
O que não melhora essa sensação de deslocamento que venho sentindo desde que cheguei na bilheteria, fui arrastada por um segurança até a grade e avisada para esperar por ele quando o show acabasse. Não, eu não paguei por esse ingresso caríssimo na primeira fila, eu fui convidada. Por ela.
O motivo dela, eu não faço ideia. O meu motivo de ter aceitado? Eu não faço ideia. A mensagem dizia “tenho uma proposta para você, gostaria de conversar cara à cara. Vou estar na cidade na quinta, vai haver um bilhete reservado para você. Por favor, me dê uma chance de negociar.”
Me dê uma chance de negociar. Talvez tenha sido essa parte da mensagem de voz que me moveu até aqui, já que até hoje, os royalties que me prometeram pela música não foram pagos devidamente – sete por cento é o caralho! Compus essa letra sozinha e estava pré-produzida quando eles a pegaram.
Talvez tenha sido o fato de ter ouvido a voz dela, de uma forma sincera, como eu não ouvia há cinco anos. Porque todos os trechos de entrevistas que vi de Lu durante esse tempo – contra a minha vontade, passando na minha timeline – pareciam ensaiados à exaustão.
Sei lá. Eu achava que estava pronta para esse reencontro, mas depois de uma hora e meia olhando para ela no palco, procurando qualquer resquício da garota que conheci, estou começando a achar que é uma péssima ideia.
A música acabou, Lu se despediu do público, vou só me enfiar no meio dessa gente e sair daqui, fingir que nunca tomei essa decisão ridícula de sair de casa para o tour da dor de cotovelo, vendo minha ex do fim da adolescência esfregar a fama dela na minha cara.
— Senhorita Martins! Por aqui!
Droga!
O segurança estava acenando para mim. As pessoas à minha volta olhavam com curiosidade, enquanto ele abria a grade para que eu passasse. Um brutamontes quase duas cabeças maior do que eu, e isso é realmente muita coisa, porque até que sou alta.
Alta e magrela, praticamente uma tábua. Meu gosto por roupas largas em nada me ajuda a amenizar a falta de curvas do meu corpo. Somando isso ao fato de ser branca como uma vela e aos cabelos escuros e muito lambidos que costumo deixar grande, poderiam facilmente me associar a uma assombração. O capuz do meu moletom cobrindo a minha cabeça é só a cereja do bolo.
O brutamontes de Lu é um contraste perto de mim. Grande, corpulento e negro da cabeça aos pés. A careca reluz na iluminação do corredor pelo qual ele está me levando. Me sinto como uma refém de tráfico humano muito passiva de sua situação.
Talvez seja esse o caso.
Talvez Lu não tenha mandado nenhuma mensagem e seu time de empresários tenha usado AI para simular sua voz e me atrair até aqui, à fim de dar um sumiço na única mancha em seu passado, numa tentativa de despistar colunistas de fofoca que estejam vasculhando em busca de um escândalo com seu nome.
Nah! Foi muita viagem até para mim. Embora, eu não duvidaria que o séquito em volta dela fosse capaz de uma coisa dessas. Eu sabia muito bem do que eles eram capazes de fazer, para que a carreira de seu fantoche permanecesse intacta e lucrativa.
O segurança parou diante de uma porta, puxou um molho de chaves e a destrancou, dando espaço para que eu passasse.
Com as mãos enterradas em minha blusa mesclada, dei o passo em direção ao portal que me levaria para o meu abate. Desci alguns degraus para o estacionamento privado, haviam algumas vans e um carro preto, luxuoso, tudo novinho em folha, ainda com a pintura reluzente.
Encostada no capô do carro estava meu último pesadelo. Um metro e sessenta e sete de pura ambição, um contraste de dez centímetros comigo. A pele negra, viçosa, era visível em algumas partes do casaco que estava usando, provavelmente por cima do body do show, já que suas pernas torneadas estavam à mostra. Pelo menos dez quilos mais magra do que eu me lembrava, ela desaparecia por dentro dele. Ao menos ainda mantinha os cabelos cor de rosa, que havíamos decidido no passado, ser sua marca registrada – se é que aquele era mesmo o cabelo dela.
Estavam lisos, longos, com um caimento e volumes perfeito demais, para quem precisaria de uma quantidade considerável de química até alcançar aquela cor e textura – isso se não ficasse careca primeiro.
Suspirei, há alguns passos de entrar em seu campo de visão. Eu gostava tanto do volume e dos cachos que ela tinha antes da fama. Combinava muito mais com sua personalidade. Pelo menos com a personalidade da garota que eu conheci.
Lu notou minha presença e se virou para me encarar, sorriu de lábios fechados quando parei a uma distância segura dela.
Eu estava calma até agora.
Mesmo tomando a decisão de partir, quando o segurança apareceu, aceitei que era o destino me empurrando para uma situação que já estava na hora de acontecer. Cinco anos era tempo suficiente para sermos capazes de ter uma conversa civilizada e acertarmos os negócios pendentes entre a gente.
Mas agora eu sentia a carne sobre minha pele tremer, enquanto Luiza parecia a segurança em pessoa me encarando com aquele meio sorriso morno que eu passei a odiar.
É, eu não estava pronta. E agora não tinha como fugir da amostra grátis da desgraça que aquela conversa provavelmente seria para mim.
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O Próximo Hit
RomanceVicky e Lu eram um casal apaixonado, até que uma oportunidade para o estrelato no mundo da música, as separou. Cinco anos se passaram e Vicky é uma compositora à beira de desistir de sua carreira, enquanto Lu é uma cantora pop em ascensão. Seus cam...