4 - Cavalo de Tróia

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O músico que diz que estúdio é tudo igual, nunca deve ter entrado em um estúdio de gravação, de ponta. Minha quitinete deveria caber nessa antessala. Com certeza esses sofás são mais confortáveis que a minha cama. E do outro lado do vidro que nos separava da cabine de gravação, havia outro espaço tão amplo quanto esse, coberto de carpete das paredes ao chão.

Isso, porque segundo a própria Lu, nem era o estúdio principal do Sonar Produções, o selo principal da Sky Records.

Dentro daquela sala ampla, além de mim e ela, haviam, claro, suas duas sombras: Renan Reis e Débora Cipriano; o empresário e a produtora, respectivamente.

Além deles, DJ Calí, um dos produtores musicais mais disputados da atualidade. Dizem as más línguas que é discípulo de Dave Rolls, o fundador do selo, nos anos 90. E ao seu lado, com a cara mais lavada do mundo, Bingo.

Tudo começou a fazer sentido quando dei de cara com aquelas bochechas de São Bernardo, sentadas ao lado da mesa de mixagem. O safado me vendeu pra ela, em troca de um bico num dos discos mais aguardados do momento.

Se eu não o amasse como a um pai, eu gastaria meu réu primário.

— Eu quero falar um pouco sobre o conceito desse álbum. – Lu começou a discursar – A minha ideia pode parecer um pouco egocêntrica de início. Mas é que eu sinto, que esses anos todos, eu estava cantando para o público sobre a história de outras pessoas e agora eu acho que é hora de cantar sobre mim. A forma como eu cheguei até aqui é uma história e tanta, e precisa ser contada. Além do mais, sinto que devo isso aos fãs que estão comigo desde o início, desde a época do Zero.

Senti uma pontada no fundo do peito quando ela mencionou o álbum esquecido.

— Todos os dias, nas minhas redes sociais, tem uma galera lá pedindo que eu resgate esse álbum nas plataformas digitais, então eu pensei em dar a eles algo similar.

— É, nós sabemos disso. – Débora a interrompeu, com um tom cansado – Todo santo dia eu tenho que limpar comentários dessa gente frustrada.

Eu tentei me conter, mas não consegui. O olhar que lancei na sua direção deixava bem claro a minha antipatia por ela.

E eu sabia que era recíproco.

Quando estive no escritório para assinar o contrato, antes de um bom dia arrastado, foi o olhar de Débora que deixou bem claro que eu só estava ali por insistência da artista em questão. Aquela mulher me odiava desde a primeira vez que me viu na vida. Ou me odiava, ou tinha algum amor encubado por mim, porque não era possível que fosse sebosa daquela forma, em tempo integral.

— Eu entendo a frustração deles. – Lu amenizou – E já que, infelizmente, tive que deixar aquele disco pra trás, acho que é a hora certa pra me inspirar nele, para a sonoridade. Mais orgânica, mais R&B.

— R&B, mas você sabe, precisamos de algumas farofas, né. – Renan deu um sorriso insinuativo – Um hit é um hit e nas baladas, o público quer quantidade, não qualidade.

Lu deu um aceno, concordando.

— Vão haver temáticas pra isso. – explicou – Eu tenho um roteiro. Que vai dos meus quatorze aos vinte anos.
Minha garganta deu um nó quando eu finalmente entendi o motivo de sua insistência sobre mim. Parte daquela história era sobre a gente.

— É uma história de amor e descoberta. – Lu continuou – Que me levou a ser a artista que sou hoje e vai finalizar com meu sonho realizado. Eu penso em três singles. Um pra dançar, um pra sensualizar e um pra vocais.

— Sensualizar e vocais não estariam na mesma lacuna? – Débora sugeriu – Pra que desperdiçarmos uma música só pra isso? Podemos ter duas dançantes, são duas oportunidades de hitar no Tik Tok.

— Porque eu nasci apresentando vocais e quero que essa tenha harmonias mais elaboradas. Vai se encaixar quando montarmos tudo, porque a primeira do disco, vai ser a última lançada.

— Você pretende abrir um disco pop com uma música pra críticos? – foi o DJ quem perguntou. – A primeira música de um disco é pra ser fácil, pra que o público se sinta confortável de escutar o resto.

— Vai dar certo, confiem em mim. – Lu os tranquilizou.

— Tá. Você tem credibilidade. – Renan concordou – Mas vamos falar sobre os feats. O MC Killa disse em sua última entrevista que tinha vontade de trabalhar com você, eu acho que seria interessante trazê-lo para o projeto. Ele tem dois hits bem estourados e poderia ficar interessante no single sensual.

— Não vamos ter feat, já falamos sobre isso.

— Mas feats ajudam a trazer outros públicos pra agregar ao seu.

— Eu já tenho um público, Renan. E esse álbum é sobre mim. Além do mais, não faz o menor sentido eu fazer um feat com um cara, pra uma música que vai falar sobre eu e outra mulher.

Eu confesso que esperei um auê dentro do estúdio. Não era segredo o fato de Lu ser lésbica, na verdade, ela ganhou público no passado graças a isso, mas desde que havia assinado com uma gravadora grande, essa parte de sua essência havia ficado propositalmente apagada.

Ela não aparecia publicamente com namoradas, quando algum rumor vazava ela desconversava nas entrevistas, suas músicas românticas eram ambíguas e sua equipe evitava associá-la à datas e eventos LGBT+. Um dos motivos pelo qual no passado eu torci o nariz para toda aquela gente, mas que nunca pareceu incomodar Luiza.

Vê-la enfrentar o empresário sobre o assunto era, no mínimo, interessante.

— Não faz diferença o contexto da musica, o público não pensa sobre isso hoje em dia. Eles querem ver seus favs juntos, só isso. – Débora explicou.

— Não encaixa no conceito do álbum. – Lu replicou – Vamos deixar os feats para a próxima era, eu posso me sustentar sem eles nessa.

— Ninguém pode, no mercado atual. – Renan argumentou – Vamos fazer assim: e se fizermos essa extra? Uma interlude pro álbum? Não podemos deixar passar essa ponte que ele mesmo fez.

— Eu topo, desde que vocês não interfiram em mais nada sobre esse álbum.

Empresário e produtora se entreolharam por um momento, ele pareceu consentir, ela, se conformar.

— Justo. – Renan deu a última palavra. – Vou entrar em contato com a equipe do Killa, vamos trabalhar esse feat antes que você se enfie de cabeça nesse álbum. De resto, temos um acordo e um prazo. Seis meses. Seu último álbum fecha um ano, lançamos o feat nesse meio tempo, entramos com o single dançante para chamar o público pra nova era e aí lançamos o álbum. Fechou?

— Fechou! – Lu ergueu os dois polegares para o empresário.

— Então, vamos começar a trabalhar!
É, eu estava ferrada. Quando assinei aquele contrato, eu estava preparada para a pressão, todas as exigências e ter o combo da desgraça que tomava conta da carreira da Lu, fungando no meu cangote. Mas confesso que imaginava que a temática rodaria muito mais em torno de sua infância, sua relação com a música por meio dos pais, suas referências que a moldaram como artista, do que no período em que nossas vidas se entrelaçaram de tal forma, que era difícil saber onde ela terminava para eu começar. E vice-versa.

Eu podia mentir para mim e dizer que cinco anos era tempo suficiente para revisitar esse passado, mas eu estaria mentindo. A verdade é que venho correndo dele por todos esses anos enquanto assistia, contra a minha vontade, sua ascensão.

Se Lu tivesse sido mais clara sobre a sua proposta, eu não teria assinado aquele contrato por nada. Agora era tarde demais.

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