3 - A incrível arte de me boicotar

14 5 0
                                    


Eu moro numa quitinete. Um espaço bem pequeno, que mal dá pra mim, meu notebook, meu violão e meu teclado. Mas é relativamente perto do centro, o que é bom.

Só que, com o rumo que minha carreira vem tomando, eu não terei mais que dois meses por aqui – porque um mês de aluguel já está atrasado há quinze dias.
Eu deveria estar ligando, mas não estava. Até a noite passada.

A conversa com Luiza mexeu mais comigo do que gosto de admitir. De muitas formas. De todas as formas. Com o meu ego, com a minha teimosia, com a minha capacidade de me boicotar e com cicatrizes que eu achava que já estavam fechadas.

Cinco anos! Porra, Victória! Cinco anos é uma vida!

Rancorosa, eu? Que nada!
Eu deveria ter levantado há uma hora e ainda estava enrolada em meus cobertores, processando tudo o que Luiza havia dito. Todo o fingimento pra não admitir que havia uma montanha de roupa suja entre nós duas que nunca lavamos sobre o nosso fim, a insistência em me querer no quarto – QUINTO – álbum de sua carreira promissora e mainstream. O papo furado de voltar às raízes.

Que diabos!

Eu não deveria me importar com nada disso! Eu deveria estar focada no que tenho que fazer que é… Bem, nada.
Tem semanas que minha maior rotina é fazer vários nadas nesse apartamento, esperar anoitecer e ir gastar minha cara de pau nos bares da vida – e o resto de minhas economias.

A verdade é que eu já desisti, só estou procrastinando para ligar pros meus pais e voltar pra casa.

Esfreguei meu rosto para afastar essa sensação horrível de mim, um misto de preguiça, rancor e fracasso. Talvez, depois da noite passada, esse fosse um dia perfeito para fazer essa ligação, por que não?

Ergui minha mão e tateei o telefone. Havia cinco ligações perdidas no meio da noite, de um número desconhecido. Abri meu WhatsApp para procurar o contato da minha mãe e dei de cara com uma mensagem desse mesmo número.
Abri.

Eu to invadindo o seu espaço, eu sei. Mas sinto que preciso fazer mais essa tentativa. Você não precisa se encaixar na indústria, eu conheço artistas que combinariam muito bem com suas composições. Posso te botar na fita deles, se aceitar fazer esse álbum comigo. Pensa com carinho, Vicky, por favor.

Onde essa desgraçada conseguiu o meu número?

Tive vontade de jogar meu telefone longe e voltar a dormir. Era uma proposta tentadora demais e eu não queria ficar com esse peso na minha cabeça, do que poderia ter sido, quando eu voltasse para casa. Luiza estava me oferecendo a oportunidade que eu vinha procurando por todos esses anos. Assim, de mãos beijadas.

Algo que ela poderia ter feito há cinco anos atrás, mesmo que achasse que nosso relacionamento atrapalharia a carreira dela. E não fez.

Eu teria ficado feliz em ser a ex secreta, se ao menos tivesse sido privilegiada com as indicações dela.

Minha mesa de cabeceira começou a vibrar antes do barulho do telefone chamando chegar aos meus ouvidos.
Virei e lá estava seu número no meu visor, requisitando uma chamada de vídeo.

Mas isso é serio? É algum tipo de pacto que ela fez para obter fama, envolvendo ter que escrever o quarto álbum com a ex que ela chutou e fingiu até esse momento que não existia?

Eu não vou atender. Mas também não consigo largar o telefone. Fiquei ali, apenas olhando para a chamada até ela parar de insistir. Uma nova mensagem desceu na minha barra de notificações.
Tinha um arquivo anexado. Minha curiosidade fez meu dedo clicar mais rápido que minha decisão de ignorar.
Um contrato?

Embaixo do arquivo baixado, uma mensagem:

Já está redigido pra você. Cinquenta por cento limpo de cada música que entrar no disco. É a maior porcentagem que já fizemos pra um compositor. Analisa e me liga, mesmo que for pra negar.

Que audácia! Que disparate! Que inferno!

Como eu poderia me boicotar agora, se eu não tinha mais a desculpa de que não tive uma oportunidade decente?
Eu gastei as duas horas seguintes para procurar qualquer brecha naquele contrato que me desse uma justificativa par não aceitar. Mas que desgraça! Não havia nenhuma. O contrato era o sonho de todo compositor e havia sido dado a mim de mãos beijadas.

Bom demais pra ser verdade.

Mas bem, até pra me boicotar eu precisava ter alguma razão. Não poderia mais me justificar quando minha ex famosa estava me dando a oportunidade de escrever um disco de mãos beijadas.

Eram onze e meia da manhã e eu ainda não tinha saído da cama, não tinha tomado café, não tinha nem escovado os dentes. Encarei o número estranho pelo qual Luiza havia entrado em contato comigo.

Eu não tinha crédito no telefone, obviamente. Estava usando o wi-fi.
Ela pediu pra ligar, não era? Minha última saída era que ela não atendesse, por isso mesmo, optei pela chamada de vídeo. Se estivesse numa reunião – e ela deveria estar – ela iria recusar e eu poderia seguir com meu plano de desistir em paz.

Dois toques, ela atendeu.

Seu rosto maquiado surgiu na minha tela, emoldurado pelo cabelo cor de rosa. Eu ainda tinha remela nos olhos.

— Vicky… tória. Victoria. Oi! – ela atendeu às pressas.

— Você venceu, Luiza. – respondi sem cerimônias – Se tudo o que está nesse contrato estiver valendo.

— Está! – disse com convicção – Vou estar de volta à cidade na semana que vem, com o fim da turnê. A gente assina e começa a trabalhar. Salva o meu contato.

— Por falar em contato, como é que você conseguiu o meu? – disparei.

Lu me lançou um sorriso misterioso.

— O Bingo me passou.

Bingo! Aquele grandessíssimo filho da puta!

Quer dizer que ele ainda tinha contato com ela, por todos esses anos. Nosso antigo engenheiro de som de permuta, era mais um dos talentos desperdiçados pelo mainstream. Um pouco mais do dobro da nossa idade, um mestre em refinar cada nuance de uma gravação. O nome dele era Márcio, mas o apelido era porque suas bochechas pareciam a de um cachorro. Era o amigo mais antigo que eu tinha na Capital. O que acreditou no nosso talento logo de cara – no meu como compositora, no dela como cantora.

Não sei se eu ficava feliz ou triste por ele ainda conservar a amizade com Lu.

— Eu confesso que não esperava por essa. – admiti.

— Agradeça a ele depois. – Lu respondeu com um sorriso aberto. Alguém chamou seu nome aos fundos e ela desviou a atenção da tela, por um momento – Eu preciso ir. Semana que vem! Marca essa data.

— Não vou esquecer.

Minha cabeça fodida não vai deixar.

Lu voltou a me encarar pela tela do telefone, abrindo um sorriso empolgado.

— Mal posso esperar pra trabalharmos juntas novamente, Victória. Esse vai ser o álbum da minha carreira.

E desligou.

O álbum da carreira da prestigiada Lu. Não sei se eu seria capaz de entregar a ela a qualidade que estava esperando de mim.

O Próximo HitOnde histórias criam vida. Descubra agora