Não sei como consegui dar conta de tanta papelada em tão pouco tempo. Não estava ansiosa para o encontro que teria mais tarde com o Nicolas, estava curiosa sobre o que iríamos conversar.
Liguei para cancelar o jantar com a Hanna e prometi que depois a recompensaria de alguma forma. Ela ficou me fazendo milhões de perguntas sobre onde eu iria, com quem iria e o que iria fazer. Era só preocupação. Ela queria saber de tudo antes de passar os detalhes para polícia caso eu sumisse.
- Essa é a sua agenda da semana.
Léa entrou em minha sala e colocou um pequeno bloco de capa dura sob a mesa.
Olhei para o objeto e folheei as páginas. Muita coisa pra uma única semana.
- Você se saiu muito bem, Chloe. Seu pai ficará orgulhoso.
Olhei para ela e retribui o sorriso que me direcionava.
- Pedi ao Uriel que me trouxesse a pasta daquela obra que está atrasada, o condomínio do litoral. Amanhã irei revisá-lo e entregá-lo ao novo responsável pelo projeto.
Falei arrumando meus pertences dentro da bolsa.
- Claro, sem preocupações. Você já fez muita coisa pra um dia de trabalho, chefe!
Dei risada e ouvi o celular apitar. Olhei o relógio em meu pulso e provavelmente seria a mensagem com o endereço do Nicolas.
- Preciso adiantar. Tenho um compromisso.
Chequei minha mesa pela última vez, deixaria meu notebook na empresa naquela noite. Olhei para Léa e me despedi, deixando-a na responsabilidade de fechar minha sala.
Passei pelo hall e cumprimentei as duas secretárias atrás do enorme balcão de mármore. Por sorte o elevador estava parado no andar e como uma cega, apertei o botão que iria para garagem. Tirei o celular da bolsa e conferi as duas mensagens que havia chegado. Uma era o endereço, e a outra era isso:"me diga se prefere salada ou pizza"
Quem comeria salada após um dia exaustivo de trabalho? Dei risada. Médicos e suas manias de serem sempre saudáveis.
Digitei uma resposta rápida."vinho ou cerveja?"
Esperei pela resposta com uma ansiedade inexplicável. Precisava de dois tapas na cara pra acordar dessa idiotice que estava me metendo.
O elevador chegou na garagem e imediatamente corri até o meu carro. Não me importei com o cabelo um pouco bagunçado ou o cansaço, não queria impressioná-lo, mas a ideia de que iria vê-lo chacoalhava todas as células do meu corpo.
Entrei no carro e coloquei a bolsa no banco do passageiro. O celular voltou a apitar."nenhum dos dois, que tal água?"
Não pude deixar de revirar os olhos ao ler aquilo. Por fim acabei sorrindo. Ele deveria ter algum problema com bebida, era a única explicação pra toda aquela aversão à vinho, cerveja e qualquer outra coisa que tivesse álcool. Digitei outra resposta.
"só não desisto dessa conversa porque vai ter pizza"
Enviei e a resposta dele não demorou.
"e salada..."
Joguei o celular dentro da bolsa, liguei o som e dei a partida. Durante todo caminho ouvindo Maroon 5, me perguntava como tinha chegado aquele ponto. Um encontro (nada romântico, devo lembrar), com um cara que dizia ser médico e que só havia me visto uma vez na vida. Não fazia ideia do que ele iria falar, com o que ele queria me ajudar, mas a curiosidade transpirava da minha pele desde o almoço que tivemos essa tarde.
Ao entrar na avenida movimentada naquele horário, suspeitei que pegaria engarrafamento. Estava errada. Parece que o mundo inteiro estava mais desesperado por explicações que eu e queria o caminho livre, para que chegasse logo à casa do Nicolas. Decidi atrasar só um pouquinho passando num posto de gasolina. Se era pra encarar uma conversa séria com um desconhecido, eu iria precisar ficar esperta.
Estacionei bem rapidinho e comprei uma garrafa de vodca e energético. Já que na casa do Balst não teria álcool, pelo menos já teria tomado minha dose para enfrentá-lo.
Voltei para o carro e abri o lacre da garrafa misturando o líquido transparente ao energético e tomando um gole. A Hanna não estava aqui, não estávamos indo comemorar, mas eu já estava fazendo isso por nós duas. Ou seria nós três?
Mais vinte minutos no transito, parei em frente ao condomínio que estava no endereço. O lugar era bonito, sofisticado. Era bem a cara do Nicolas.
Olhei no espelho do retrovisor pela décima quinta vez, acho eu, desliguei os faróis e falei com o porteiro. Ele já sabia da minha chegada e liberou a entrada do portão principal. Passei por fileiras de casinhas pequenas mas muito bem cuidadas, o lugar parecia calmo, quieto, mas os batimentos do meu coração que ecoavam em meus ouvidos mostrava que o barulho interno era mais perturbador que qualquer ruído de fora.
Estacionei em frente a casinha branca de dois andares com o gramado um pouco alto e sai do carro levando comigo a bolsa.
A porta da frente se abriu e de lá saiu um Nicolas de banho tomado, bermuda jeans e... Inferno! Ele estava sem camisa ainda com a toalha nos ombros.
- Cheguei cedo? - Perguntei desviando o olhar de seu abdômen.
- Um pouco atrasada pra quem iria chegar depois das seis.
Olhei o relógio outra vez. Sete em ponto. Continuei encostada no carro e cruzei os braços.
- Entra. A pizza chegou.
Caminhei a passos curtos em direção à porta e ele deu espaço pra que eu passasse. Ouvi a fechadura bater atrás de mim.
Olhei em volta e constatei: ele era organizado demais. Os móveis eram brancos e alinhados, uma estante de livros ocupava um dos lados da sala ao lado de duas poltronas. A TV estava presa à parede e de abaixo um aparador com inúmeros porta-retratos dava um toque familiar ao ambiente. Um tapete cor de café cobria metade do chão e um sofá "L" completava o espaço. Não parecia a casa de um rapaz solteiro.
Ele era solteiro, não era? Oh meu Deus!
- Gostou do que viu?
Voltei o olhar para seu rosto e acho que fiquei vermelha no mesmo instante. Não sabia se ele estava falando da casa ou do seu corpo...
- Muito interessante.
Consegui dizer.
Ele balançou a cabeça e estendeu a mão. Hesitei em pegá-la, mas foi o que acabei fazendo. Ele me levou até a cozinha e afastou a cadeira oferecendo-me o lugar. Tirei o terninho e sentei, colocando-o em meu colo.
- Vou só por uma camisa e já volto. Fique à vontade.
- Não vamos conversar?
Perguntei apoiando o queixo nas mãos e lançando um olhar insinuante em sua direção.
As covinhas de seu sorriso apareceram me tirando o fôlego. Ele sabia ser irresistível e me desarmar ao mesmo tempo.
- Prefere conversar primeiro?
Olhei para mesa e o cheiro da pizza me fez mudar de ideia.
- Não. Prefiro comer antes de ouvir o que você quer falar. A pizza parece ser mais importante.
Sua risada me atingiu como uma onda quente. E ele sumiu escada acima. Não sei quanto tempo passou, mas pareceu uma eternidade. Torci e estalei todos os dedos esperando.
E aí ele entrou. Vestindo uma camisa branca que realçava a cor dos olhos e o cabelo bagunçado por causa da toalha que provavelmente havia passado por ali. Invejei a toalha.
- Você quer beber alguma coisa?
Ele perguntou pegando meu prato para por uma fatia de pizza.
- Água? Não, obrigada.
- Chloe, eu prefiro que não beba enquanto estivermos juntos.
Engasguei com o ar e encarei seu rosto.
- O que você tem com a bebida?
- Você disse que preferia comer antes de conversarmos.
Ele disse colocando o prato em minha direção.
- É o que estamos fazendo, não é?
- Você ainda não tocou em seu prato.
Olhei para pizza e cortei um pedaço levando-o a boca. Estreitei os olhos e ele deu um sorriso de canto. Aquele sorrisinho que eu podia sentir mesmo do outro lado do telefone.
- Está ansiosa?
- Estou curiosa. Será que dá pra falar de uma vez?
Nicolas encheu seu prato do que seria uma salada de palmito e frango, e olhou pra mim.
- Chloe, você chegou ao hospital quase desacordada. Num coma alcoólico. Por isso te dei prioridade no atendimento.
Merda. Ele iria contar tudo. Mas não era o que eu queria? Prestei atenção.
- Você provavelmente bebeu muito e muito rápido. Seu corpo passou por um colapso por causa do álcool e sua pulsação estava fraquíssima.
"Colapso" e "pulsação". Conhecia essas palavras. E o único pedaço de pizza que havia comido, começava a se revirar em meu estômago. Ele pareceu perceber e perguntou:
- Quer água?
- Merda, eu não quero água. Eu quero saber aonde você quer chegar com isso tudo.
Ouvi sua respiração ficar tensa e ele prosseguiu.
- Me tornei um quase especialista nesse quesito que envolve bebida desde que perdi minha irmã mais nova.
- Eu quero água!
Falei rapidamente e um traço de humor passou pelo seu rosto. Oh droga! Ele também tinha perdido alguém por causa da bebida. Agora eu entendia o porque ele nunca bebia...
Nicolas levantou-se e abriu a geladeira. Encheu um copo de água e colocou em minha direção.
Peguei o copo e percebi minhas mãos trêmulas.
- O que eu tenho a ver com isso?
Ele voltou a sentar em minha frente.
- Eu vi minha irmã em você quando chegou no hospital na sexta feira. Ela era alcoolista.
Cuspi a água de volta no copo e levantei da cadeira.
- Você quer dizer que eu sou alcoolista?
Meu Deus! Como assim? Eu não escutava aquela palavra desde que minha mãe havia morrido. Como era possível ela voltar à tona tão ridiculamente fora de contexto?
- Chloe, por favor, eu não disse isso. Dá pra você sentar?
Coloquei as mãos na cintura e tentei controlar a situação. Meu estomago queimava, minhas pernas estavam tensas, meus ombros pesados. Obedeci e sentei novamente.
- Obrigada. Então como eu ia dizendo... Você é jovem, Chloe. Quando começou a beber?
- Dezesseis anos.
- Um pouco jovem. Seus pais permitiam?
- Eu não quero falar nisso. Eu não quero mais falar. Eu só quero saber o porque você me perseguiu esse tempo todo. Era pra falar da sua irmã? Do problema que ela enfrentou?
Nicolas parecia impaciente. E eu me sentia uma menininha teimosa. Não dava pra simplesmente calar a boca e escutá-lo?
- Fiz um exame de sangue e ao que parece, você nunca ingeriu tanto álcool quanto naquele dia. Eu fiquei realmente preocupado. Não injetei somente glicose em você, mas outros medicamentos que reduziram os efeitos que poderia apresentar. Fiz tudo certinho para que você não acordasse tão mal.
Fixei meu olhar no rosto do Nicolas e senti o sangue fugir do meu rosto. Então eu tinha realmente exagerado? E ficado desacordada? Em um quase coma alcoólico?
Santo Deus!
- Eu faço parte de um projeto para jovens alcoólicos em vários hospitais da cidade. Calma, não precisa gritar e ficar brava, você não é alcoolista, mas eu gostaria que me acompanhasse em uma dessas reuniões e visse como tudo funciona em nosso corpo. Queria mostrá-la o quanto uma dose de tequila numa noite de comemoração pode ser fatal. Fazemos alguns estudos, conversamos com algumas pessoas e alguns profissionais, psicólogos e outros médicos...
Soltei a respiração no momento em que o ouvir dizer que eu não era alcoólatra. Bom, pelo menos eu ainda poderia beber sem preocupações, não poderia?
Cortei outro pedaço de pizza e comi.
- Isso é tudo?
- Se você me ajudar a desenvolver o meu projeto em cima de algumas pesquisas, sim.
Ele disse finalmente comendo o que havia em seu prato.
- E seu projeto é sobre alcoolismo?
Ele assentiu.
- Então eu não serei sua pesquisa?
Assentiu outra vez. Tudo bem. Eu não era uma viciada em álcool, mas ja tinha passado por uma situação ruim por causa dele e o Nicolas só queria a minha ajuda para um projeto. Eu poderia fazer aquilo.
- Acho que posso te ajudar.
Respondi mordendo o lábio distraída.
- Eu sabia que poderia.
E lá estavam aquelas covinhas lindas outra vez. Não perguntei sobre sua irmã e nem como ela morreu, não estava no meu direito de perguntar. Se ele quisesse que eu soubesse, teria dito. Da mesma forma como não toquei no assunto sobre minha mãe e seu acidente.
Comemos em silêncio e depois de tirar os pratos, ele pediu pra que o acompanhasse até a sala. Segurei o terninho e levantei, passando por ele sem respirar. Ainda estava tensa por causa da conversa.
Nos sentamos no sofá, um de frente pro outro e o Nicolas segurou minha mão.
- Parabéns pelo cargo. Você tem uma personalidade muito forte.
Sem pensar puxei minha mão da sua e forcei um sorriso. Ainda me sentia desconfortável.
- Obrigada. Não está sendo fácil.
- Chloe, não fique estranha comigo. Somos amigos, certo?
Somos? Perguntei a mim mesma.
- Não sei se posso ser amiga de um médico maluco que pilota uma moto.
Ele riu e aproximou um pouco mais de mim.
Ar! Eu precisava de ar. O cheiro do seu sabonete invadiu meus sentidos e me fez fechar os olhos por um momento. Ele estava flertando comigo? Amigos flertam?
Amigos transam, lembra? O Gabe...
Afastei esse pensamento no mesmo instante e encarei o Nicolas.
- Porque eu?
Seus dedos percorreram meu maxilar e ele falou baixinho:
- Porque é você, Chloe.
Passei a língua pelos lábios instintivamente e pude sentir lá no finalzinho o gosto da vodka que tinha bebido antes de encontrá-lo. Nicolas se aproximou mais um pouco. A boca quase tocando a minha. Soltei a respiração.
- Você bebeu antes de vir, não foi?
Arregalei os olhos e meu celular tocou dentro da bolsa.
Procurei pelo aparelho e atendi sem olhar a chamada.
- Chloe, aonde você está?
Era o meu pai. Tinha esquecido que iria vê-lo antes que ele fosse viajar. Droga!
- Oi pai. Me desculpa, acabei enrolada num compromisso. Chego aí em 30 minutos.
Olhei desesperada para o Nicolas que parecia desapontado e com raiva.
Desliguei o celular e falei baixinho.
- Preciso ir.
- Posso te acompanhar.
Ele disse levantando-se e me estendendo a mão.
- Não - consegui dizer - eu posso dirigir.
- Eu prefiro acompanhá-la.
- Não preciso de babá.
- Mas precisa aprender a ouvir os outros. Eu te levo até seu pai e depois pego um táxi de volta.
Bufei. Segurei sua mão e apertei com força.
- Eu não bebi.
- Não quero saber. Me dá a chave do carro.
Olhei assustada e entreguei as chaves em suas mãos. Ele me intimidava. Me assustava. E eu não conseguia raciocinar perto dele.
- Eu queria socar a sua boca pra você parar de se achar tanto.
Ele riu debochado e respondeu:
- Eu queria beijar sua boca, mas você é tão teimosa...
Sabe minhas pernas?
Viraram manteiga.
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Eu sou o arrepio
RomanceChloe Sandler é universitária e futura diretora da construtora de seu pai. Após a morte de sua mãe, nove anos atrás, Chloe tem enfrentado problemas familiares que a denominaram duas coisas: "o milagre" e "a culpa". Após uma noite de comemoração, Ch...