58 - Gatilho

28 6 0
                                    

Para surpresa de Lucas, quando foi buscar Ana na pousada, ela aceitou voltar com ele sem reclamar, porém permaneceu em silêncio durante todo o trajeto. Ele não conseguia interpretar se ela estava aborrecida com ele por ter sido grosseiro, ou se era por outro motivo.

— Ana... Você está melhor? Passou o mal-estar?

— Estou bem.

Ana nunca foi lacônica. Isso o deixou ainda mais incomodado.

— Acha que foi algo que você comeu? Ou era enxaqueca mesmo?

— A gente conversa em casa.

Lucas ficou aborrecido com o corte, mas não conseguiu ignorar o sentimento doce e quente que o envolveu quando ela usou a expressão "em casa". Isso quase suplantou a angústia por saber que as coisas entre eles pareciam bagunçadas demais agora.

A sensação de paz permaneceu até chegarem de fato em casa. Ana subiu direto para a suíte e se enfiou na banheira, e Lucas estava cogitando se a acompanhava ou não quando o telefone tocou.

– Russo? – Era Alencar, do outro lado da linha.

– Pode falar.

– Preciso que você venha para cá, agora. O Morato foi baleado.

Lucas teve um sobressalto. Morato era o policial que trabalhava com Lívia na perícia. Geralmente era ele quem fazia as pesquisas no âmbito da tecnologia e assuntos diretamente relacionados a crimes cibernéticos, em suma, o hacker do DEIC. Ele, para quem Lucas havia enviado mais cedo as mensagens que estavam ocultas com Ana... agora, baleado.

– Preciso sair. – Lucas avisou Ana da porta do banheiro – quando eu voltar, a gente conversa.

Ana não respondeu, só afundou na banheira.

Quando Lucas retornou, já era madrugada. Ele se moveu em silêncio, deixou a chave no aparador de sempre e as botas na soleira da porta. Lentamente, caminhou só de meias pelo corredor, cruzou o quarto e foi direto até o banheiro, onde lavou o rosto e usou a água das mãos para puxar os cabelos revoltos para trás, tirando-os da testa por alguns segundos, para que em seguida, os fios teimosos voltassem ao lugar de antes.

Não queria que Ana notasse seu estado, tanto interior quanto exterior. Não queria que ela o visse como estava agora. Como um felino, ele voltou ao quarto e ocupou a poltrona ao lado da cama. Ana dormia profundamente, para seu próprio alívio.

O final de semana não tinha saído em nada como o planejado.

Ele ficou um bom tempo observando-a dormir, como se ela fosse uma brisa fresca no meio do inferno. Seria bom se as coisas fossem como o sono, como se pudessem ser suspensas, apenas por um pouco de tempo, para que não se precisasse pensar nelas. Infelizmente a vida era tão complicada que, quando ele queria dormir para não pensar, os pensamentos invadiam seu único lugar isolado do resto em forma de pesadelos, só para lembra-lo do que tentava esquecer enquanto acordado.

Lucas estava destroçado por dentro. A tristeza, culpa e medo que tinham origem na morte do seu colega de trabalho o esmagavam a ponto de ele não poder respirar, mas Ana, deitada em sua cama, o ajudava a não desabar. Uma lágrima correu enquanto ele apreciava o quanto sua pequena sereia era linda. Os cabelos espalhados pelo travesseiro, a boca entreaberta, o bico do seio escapando pelo decote da camisola fora de lugar, as pernas morenas e torneadas que sempre o deixavam cheio de desejo...

Ele lamentava estar sozinho no fim do dia. Lamentava não ter chegado a tempo de ver seu colega ainda vivo, lamentava não poder falar disso com ninguém, nem mesmo com Ana, porque certamente um acontecimento desses e o medo que isso despertaria nela poderia piorar tudo entre eles... Lamentava que, mais uma vez, ele tivesse sido a porra do responsável por uma morte sem sequer ter puxado o gatilho.

Morato era jovem. Mais novo do que Lucas uns três anos, mas já era pai. Lorenzo tinha acabado de completar um aninho, e Mariana, sua companheira, sequer entendia direito o que Morato fazia na D.P., mesmo assim o apoiava, e agora estava lá, com um bebê no colo, sem mais lágrimas a verter, se perguntando que merda tinha dado errado.

Lucas. Ele foi a merda que deu errado. Se não tivesse envolvido o rapaz na trama, talvez o policial estivesse de boa, trocando alguma fralda agora.

Era óbvio que Morato conhecia os riscos, assim como Lucas. Ninguém ali na D.P. ignorava o quanto o trabalho podia ser perigoso, exaustivo e traiçoeiro.

Só que Morato não enfrentava homens armados, não saia em incursões nem agia em campo. As armas dele se resumiam a um teclado e um mouse frente a uma tela um pouco maior do que o padrão, cercado por dezenas de outras parafernálias tecnológicas.

Discos rígidos e modems não deveriam ser considerados armas de fogo. Mas uma bala alcançou o corpo isento de colete a prova de balas, o que não seria considerado uma imprudência ou deslize, simplesmente porque discos rígidos e modems não dão tiros no meio da noite.

Uma bala perdida. A balística não encontraria a origem, porque não haveria uma arma registrada, portanto, essa linha de investigação não daria em nada. E o gatilho iria continuar recaindo sobre Lucas, que forneceu a munição, que levou à ação, que resultou em mais um órfão de pai, assim como ele mesmo o fora.

Mais uma lágrima correu, quente como lava.

Cansado de sustentar o peso, de carregar a culpa e todo o resto, ele se acomodou ao lado de Ana, a única realidade que ele tinha, o único ponto firme e inabalável que o mantinham são: a sua morena, a sua sereia. Ele a abraçou com cuidado enquanto mais algumas lágrimas ridiculamente descontroladas e vergonhosas expunham seu interior estragado, e terminou por adormecer, esperando que o amanhã trouxesse respostas, em todos os aspectos.

– Lucas, isso não é justo... Eu te amei, fiz tudo por você, e olha o que fez comigo!

Alarmado, Lucas encarou Alice, toda suja de sangue e portando uma pistola pequena.

– O que você fez? – Ele correu até o corpo caído, coberto de areia.

– Não era para ser assim... Você devia ter esperado mais!

Apavorado, ele se inclinou e viu um filete de sangue fazendo um caminho sinuoso entre as ranhuras do asfalto.

Asfalto?

Que estranho... Há pouco não estavam sobre a areia?

Confuso, Lucas virou o corpo e o rosto foi finalmente revelado. Quando o reconheceu, enforcou um soluço.

Era Roberto, seu pai, com um buraco de bala na têmpora.

Lucas acordou coberto de suor. Com o coração disparado, ele se levantou com cuidado para não acordar Ana. Pé ante pé, foi até a cozinha e se serviu de um copo de água. Permaneceu ali por um bom tempo, tentando regular as batidas do coração com os exercícios de respiração sugeridos pelo Dr. Joaquim.

O sonho, diferente dessa vez, trouxera o seu pai à cena. Por quê? Depois de semanas de paz, tudo voltou de uma vez, talvez por causa das novas descobertas, da morte do colega, do medo e incertezas... gatilhos.

Aturdido, seguiu até o jardim e observou as nuvens que encobriam a lua. Tantas mentiras encobertas... como era possível que ele estivesse no meio de tanta lama sem perceber?

O buraco cheio de dor e mágoa que tinha dentro de si era tão torturante, que por um instante, se arrependeu por ser um cara tão "limpinho". Se não fosse tão "caxias", recorreria a qualquer opioide, álcool ou outro tipo de fuga, só para apagar a imagem do corpo de Morato no IML com uma bala na têmpora, exatamente como acontecera no passado com Roberto, seu pai.

Se não fosse tão "certinho", já teria arrumado uma arma não registrada para fazer justiça com as próprias mãos. Ele nunca odiou tanto a própria criação como agora.

Inquieto, pegou o celular para checar as horas. Quase cinco da manhã. Seu estômago estava embrulhado e sua mão direita tremia discretamente. Não conseguiria voltar a dormir, ele precisava trazer o corpo para dentro de um estado de normalidade.

Sexo era o que melhor funcionava com ele, mas não queria acordar Ana e ainda estava chateado com ela por mentir, por esconder coisas dele. Decidiu que correr podia ajudar, então ele se preparou, calçou um tênis, e saiu.

MaresiaOnde histórias criam vida. Descubra agora