69 - Melodia Enfadonha

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Finalmente, depois de quase três horas de espera, o médico permitiu que Ana recebesse a visita alternada de apenas duas pessoas, por 15 minutos. Antônio foi o primeiro a entrar no quarto, deixando um Lucas completamente inquieto na sala de espera.

Inclinado, com os cotovelos apoiados nos joelhos, as mãos cruzadas à frente do corpo e um peso enorme nos ombros que o impedia de levantar o pescoço, Lucas contemplava os padrões disformes do piso emborrachado da ala de espera. O movimento da ponta dos seus coturnos, que batiam de modo intermitente contra o chão a ponto de incomodar os demais ocupantes da sala, de alguma forma lhe acalentava a impaciência. O ruído sobrepujava os pensamentos ensurdecedores que tentavam romper seu crânio, acusando-o dos pecados mais infames, dos erros mais bizarros, e o som da acusação era alto demais para que não se fizesse nada a respeito.

Ele poderia ter feito algo diferente, se não tivesse feito tudo exatamente igual. No trabalho que ele exercia, existia uma lógica de cálculo de risco, uma forma de antever o que poderia dar errado, e isso associado à experiência e à intuição costumava indicar o melhor caminho para um objetivo. Mas Lucas falhou nesse cálculo. Por alguma razão, por burrice ou excesso de confiança, ele não calculou o que poderia dar errado com Ana. Por esse motivo ela estava a alguns passos de onde ele estava agora, mas muito mais longe do que ele poderia mensurar em qualquer maldito cálculo.

Foi assim com Morato também. Lucas provavelmente não avaliou adequadamente as porcentagens, e não importavam as fórmulas que usasse para fazer as contas, Lucas sabia que o saldo era a culpa que recaía e sempre recairia sobre ele, o principal responsável pelo desfecho daquelas histórias de pessoas que tiveram o azar de cruzar o seu caminho, até mesmo Alice.

Dr. Joaquim falava muito sobre a culpa. Ele não fazia merda nenhuma além de falar e falar sem parar, e se achar o dono da verdade nesse assunto de gatilhos mentais. Ele dizia que a culpa era o pior deles, a principal causa de todo o resto, da depressão à ansiedade, do descontrole ao medo. Só que Lucas não estava disposto a renunciar à culpa agora, porque ela era a única responsável por dar-lhe o que de fato merecia, o único sentimento punitivo o suficiente para alguém que merecia muitos outros tipos de punição.

Antônio retornou da UTI com o rosto banhado em lágrimas, e isso não fez nada além de acrescentar mais uma vítima ao saldo de sua negligência como agente da lei. Lucas sentiu o toque em seu ombro, o indicativo de que ele devia parar de bater as botas no chão, se erguer e percorrer os poucos passos que o colocariam a quilômetros de Ana.

Ele caminhou com os olhos ainda inclinados para os padrões do piso, sem coragem para erguê-los, mas mantendo a atenção ao redor o suficiente para não esbarrar em nada no caminho. Nos malditos cálculos não havia nada que medisse a pressão da garra que lhe comprimia o peito, expulsando o ar dos seus pulmões na medida em que a porta branca e asséptica se aproximava. Ele cruzou o batente e um aroma clínico temperado de desinfetantes e medicamentos o cumprimentou, causando mal-estar não pelo cheiro, mas pelo prenúncio da visão que teria quando finalmente levantasse a cabeça.

Ele esperou até que os pés do leito surgissem em seu campo de visão, e só então ergueu os olhos. A névoa mental ainda atrapalhava seu raciocínio, e ele se viu acompanhando a quantidade de bipes que preenchiam o quarto, fazendo contratempo com o compasso da ventilação mecânica, e o ritmo agourento o fez estremecer e desejar trocar de estação.

Primeiro ele observou o tubo que entrava pela boca inchada e ferida. As marcas de riso não estavam ali, pois a pele opaca não transmitia a mesma luz, nem transferia o mesmo calor, e o cheiro avanilado fora substituído por algum derivado clorado e estéril. Ele acompanhou a bochecha inchada, onde uma mancha se propagava do início da boca até a testa, fazendo saltar o olho esquerdo cujas pálpebras não totalmente cerradas o faziam ter a impressão de que ela o espiava, acusadora.

Ao lado do leito, vários monitores, com seus ruídos incômodos, acompanhavam os dados vitais, e uma manta leve cobria apenas a região entre o joelho e a barriga. Um dos braços cobertos de hematomas recebia o acesso que controlava o fluxo de soro e medicamentos, e a perna direita, imobilizada e elevada por um travesseiro, o fez se sentir ridículo por ter duas manchas roxas no próprio abdômen que causaram tanta preocupação a ela.

Um avental leve de um azul muito claro, quase branco, envolvia o corpo frágil, e Lucas imaginou por um momento se ela estaria sentindo frio, se estaria sentindo alguma coisa, qualquer coisa. Ao mesmo tempo que ele preferia que ela não estivesse sentindo nada que a fizesse sofrer, desejava que ela o sentisse e soubesse que ele estava ali.

Talvez não fosse uma boa ideia, no fim das contas.

Lucas levou a mão até o peito que subia e descia no ritmo do ventilador, e desceu os dedos como uma carícia leve até repousar sobre o ventre.

Um filho...

As lágrimas voltaram aos seus olhos quando, enfim, absorveu todo o quadro. Um ódio crescente de si mesmo, misturado a uma devoção intensa por ela, aumentava seu pesar. Ana havia passado por tudo aquilo, todas aquelas lesões, o medo por ser sequestrada, a angústia pela espera, o desespero do afogamento, tudo por causa dele, e agora...

Um filho...

Ela tentara dizer a ele. Em algum momento, ele se lembrava de que ela tentara conversar, mas ele não tivera tempo, nem paciência, não atendera a porra do telefone, não respondera às mensagens nem voltara para casa.

Lágrimas quentes explicitavam sua vergonha, e ele agradeceu o fato de que ninguém estava testemunhando-o se condenando por tudo, desde o instante em que pisara na pousada, até este exato e angustiante momento. Teria sido muito melhor se nunca tivessem se conhecido, mas então, não haveria...

Um filho.

– Você tentou me contar, não é? Mas não tentou o suficiente. Você podia ter mandado a real de qualquer jeito mesmo, e eu tô puto porque mesmo aqui, sem uma palavra, você continua me irritando, me destruindo por dentro, e ao invés de te dizer o quanto eu te amo, o quanto te ver assim me faz sofrer, o quanto eu estou aliviado por você não ter desaparecido da minha vida de vez... – ele engoliu as lágrimas – eu tô perdendo meu tempo procurando motivos para reclamar, porque a dor de te ver aqui é tão insuportável pra mim, que eu tenho que encontrar um jeito...

Lucas interrompeu o discurso porque a garganta doía e a voz falhou. O silêncio se prolongou, interrompido apenas pelo som pausado do ventilador mecânico e dos bipes dos aparelhos de medição em sua melodia enfadonha. Ele a contemplava, era como se estivesse dormindo, e ele gostaria que fosse assim, mas as malditas mangueiras que lhe entravam pela boca e nariz, e o roxo do olho não sustentavam sua ilusão, e ele se odiou por ser tão covarde, por ficar procurando um jeito de deixar tudo mais suave, quando isso era impossível.

– Como você consegue fazer isso? Como? Como você pode deixar tão claro para o universo que eu sou a pior coisa que te aconteceu, e ao mesmo tempo, ser a melhor coisa que já me aconteceu? Eu não vou facilitar para você, Ana. Eu vou ficar aqui, esperando você voltar para mim, e quando isso acontecer, nunca mais eu vou deixar você sair do meu lado.

MaresiaOnde histórias criam vida. Descubra agora